quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

SOBRE O ÍMÃ


a produção da energia elétrica é medida no tempo: megawatts-hora. Um watt é um joule por segundo, então watts-hora seriam joules-hora-segundo. Vamos dar uma cambalhota? Mas antes disso:
a energia elétrica é o tempo dela ligada
"elétrons"...
Paremos a física no átomo, como as palavras dizem que é. O horizonte Termina. Não me venham com microscópios ou simplesmente seus modelos teóricos. Falem-me da realidade concreta!
Sou humano, vejo COISAS, não abstrações.
(malditos físicos perdidos em sua teoria da natureza das estrelas, brincando de refazer newton ao contrário até uma dita sopa primordial)
que será a luz?
que é o sol?
luz: a tomada de 220 voltz
(ah, outra hora vou entender o que é watt, voltz e ohms joules ampères... francamente... não podiam simplificar? quero sim que desenhem, caralho!)
como naquele sonho, acordar e ver que estão todos dormindo, acordem, acordem, o rei está nu
a deusa está nua
a letra está nua, babel, babel
apontemos o coringa, a sombra
e simplesmente a pensemos. parar de iluminar tudo.
somente vendo também as sombras chegamos no sol, e não através da iluminação. abrir os olhos no escuro
(o sol, a utopia do corpo: como criar o ouro)
sol, utopia (ouro) do corpo
vou dar um choque no sol, elétrico como um raio (pelos olhos) te cobrir de estática, inverter teu norte e te pôr a girar como um eletroímã de fios de cobre: te faço motor de nervos voltaicos, te giro bem a luz dos olhos, máquina de radiação pura, infravioleta, ultravermelha: usina de sangue-ferro e ar bombeado (fole) encruzilhada da água em seus rins, túnel da comida, fígado fogo da alma

domingo, 19 de dezembro de 2021

O Codex Seraphinianus é um lindo livro de 1970

Todo ilustrado e escrito numa língua ininteligível de traços rabiscos que se amarram como macarrão, e seus habitantes comem macarrão de letras enquanto suas mãos viram canetas e seus olhos plantas, jacarés viram camas e há uma crítica profunda (uma anunciação) do futuro, dos animais imperadores, das cartas de baralho (e o mistério arruinado das letras, da babel perdida)
Não vou revê-lo, não em breve. Sugiro dar uma aprofundada no livro, procurando um sentido. Não é caótico, o autor ilustrou um sistema: há muitas estruturas de signo e um contínuo ressoar, de não serem mundos tão absurdos quanto o nosso. A teoria das flores, e das cores.
Teoria dos insetos. Dos minerais eternos. Do olho e do céu e do mar. Da babel de casas em que moramos, do prato, do jantar. O relógio como um buraco negro, a roupa como um buraco negro, a filiação, o banheiro, a essencialidade da água em seu percurso de chuvas e lagos (urina e lágrimas) a língua com sua carnosa potência, os olhos os olhos o Nariz, singrando o rosto por cima de lábios e sorriso, o sabor saber

domingo, 12 de dezembro de 2021

Inexiste o virtual (o mundo está todo recheado)

Não há virtual, a materialidade que é intensa e misteriosa.

Assumimos com facilidade que a letra e o mapa possuem uma segunda natureza, imaterial. Uma segunda existência, no seu significado, e nas verdades que segredos anotados podem encerrar. Um segundo plano de existência, abstrato, superior e regente do plano material, as regras que dão sentido ao diretamente intuído (que é um tanto grosseiro, burro, fora de foco).
Mas não há virtual. “Nada há na mente”. O sentido, a verdade que leio no mapa, não passa duma sombra, dum reflexo da materialidade brilhando mais além. O sentido só existe na medida da sua conexão, dos fios longos, longos como coleiras, que o atam ao mundo...
De volta ao mundo, seguindo o mapa, mesmo as trilhas que ele aponta, os caminhos, não existem. O que “está lá”, apenas e poderosamente, é uma vala que conduz. Os contornos desenhados são condensações, sedimentações da amorfa matéria que esboça Cercas e Centros, linhas divisórias e suas passagens formadas a partir do revolvimento massivo, em proliferação de princípios motores, do princípio genético da oni-concepção.
Não há nada além do papel do mapa, e da tinta de suas inscrições. E são justamente essas posições, esse seu desenho, que pulsa como um ponto-porta em que se retêm redes, reinações da matéria engalfinhando-se com ela mesma.
Ver no mapa, apenas o papel pintado, e apreender a força deste papel pintado, a força da tinta e do objeto mágico que ela cria: a força do rosto, a força da língua, apenas no rosto, apenas na língua: o mundo é real.
É preciso ver suas raízes, desenterrar as imensas letras: elas estão nuas, o mapa está nu, vejam o mapa! Ele pulsa! Inexiste passado e futuro: "só existe o que é" e o que existe é o presente, o milimétrico instante do agora: que é então um instante transbordante e pesado, grosso mesmo pois guarda nele todo o virtual que imaginavam fora. O mundo é denso, é maciço (não há vazio entre átomos, tudo está recheado) o mundo é denso

domingo, 21 de novembro de 2021

A montanha


É bonito que
mais adulto e mais peso de responsabilidade
e a secura a dureza a frieza a lonjura
como uma montanha de rocha fria e
É divertido (é bonito) que
ela se ergue em alegria e então
quando a montanha dança
um gigante carregando mundos, um muito adulto
e o peso que ele arrasta e
Então é leve a dança
a montanha sobe feito uma nuvem

sábado, 20 de novembro de 2021

De volta


Esvaziar a mente pelos dedos
Página vazia: e te invado
Ou nem sou eu, meus dedos
A febre que borbulha e
Se esvai
Limpar o fundo dos meus olhos
- como um pano úmido
a retirar pó -
O pó que se amontoa,
E minha mente uma biblioteca empoeirada
Um cemitério, uma ravina seca empedrada
Tirar-me o pó como um lavrador retira pedras
e limpa a terra
Despejar-me na escrita
Como um despejo que me limpa
Dessa poeira, sufocante
Não quero desenhos desse pó, no papel
Não dar-lhe nomes, entroná-lo
Multiplicá-lo, rebatê-lo em espelhos
Trazê-lo para dentro da família, case com minha prima, coma do meu jantar
Te ignoro
Hoje, te varro como quem joga fora os embrulhos do correio
Uma semana toda curvado sob teu pêso cinza
Mastigando tuas correntes cinzas
Farejando teu rastro estéril para te cortar, teia de vidro que sufoca tudo
Mas hoje livre
Te espano com um espanador de penas compridas
Sou de volta um homem
E durmo, em primeiro plano,
E preparo uma boa salada no almoço
E visito minha avó para colher-lhe o cafuné
E não faço nada
Sou só e vivo, vivo,
vivo simplesmente e sim.
Da poeira, eu a espirro para bem longe

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Do nariz

Vacinado, encontro amigos, tiro a máscara, patati patatá entre cuspes e lambidas, eis que sinto frio no nariz.

Saco a máscara do bolso e sou escorraçado como incoerente. Meu nariz, meu doce nariz (oh obra-prima pontuda), por que não posso te cobrir, independente dos micróbios?
Quero cobrir-me a face como um eco perdido de burkas, cobrir-me o rosto com um véu. Oh! por vergonha dos lábios tremendo, sim, por pudor do hálito e do bigode. Como um antigo, os cabelos ocultos sob o chapéu, e as boas maneiras de retirá-lo, respeitoso. Pois por respeito a ti, pelo resguardo da intimidade, me guardarei da tua leitura labial, abafarei minha voz. Em nome do nariz quentinho, ah, não me venham com teorias de contágio, estou falando da moda, da moda imperiosa e suas repressões; estou falando do véu, e da nudez!
Já tínhamos a máscara! Era meu protesto lacrimogênio. Vândalos mascarados rebentam vidraças de bancos e somem no anonimato. Mas hoje as máscaras estão invertidas, chegamos ao oriente. Pois a babilônia subiu mais um degrau, avançando as roupas e sua nudez imantada: moral repressora, e no reverso, tímida luxúria dos narizes tocando, com um leve roçar. De volta à vergonha e a intimidade, erguemos burqas como princesas ocultam a beleza proibida, e os olhos pulsam de personalidade.
Assim vestido e desvestido, frequento a máscara como um boné, tirando e botando, e botando certo e errado, para horror da moda e todo seu arsenal bélico. Que a nudez se funda em violências e proteções, e cada escudo se torna também um fecho a desatar: tiro-te a máscara para um beijo rápido, a pele desacostumada ao vento e ao sol, tua pele protegida apenas para mim: cueca, calcinha da face!
Um novo patamar do beijo, eletrizado: tesão louco de te ver narinas-boca, descobrir-te dentes que talvez sorriam: a face desbanalizada como pura intimidade - e daí à autoridade de ignorar a lei do véu, como um bruto mijando em público, e impôr inteiramente o rosto no vagão. Alto lá! Peguem-no!

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Números, números, pequenos diabinhos. Mergulho nos números ao longo de meses, incontáveis. Olhinhos zonzos das tabelas, gráficos e proporções. Sair dos números como quem volta de um país sem língua, sem ar, sem sol, trazendo minérios profundos. Enfrentar a massa de números como quem arruma um quarto atulhado de roupas e cobertores, dobrar e passar, enfileirar, conter. Conter os números, conter seu caos de vírgulas e múltiplos! Como um eletricista, e seu emaranhado de fios, por horas procurando o mais amarelo: como um cozinheiro, enchendo de tempeiros e provando o gosto, da sua sopa de água e pedra. Números números, imagino um gráfico perfeito mas quando o faço - elegante mapa do tempo e da verdade fria - me pergunto: haverá no leitor o fôlego de nesses números também entrar, quererá o leitor essa página recheada de somas e porcentagens, ignorará ele tudo que digo, em nome de seus preconceitos e caprichos, em nome de sua verdade sem números, seu amor às coisas brutas inúmeras, sua incontabilidade nata, seu desprezo pelo ábaco e pela régua, sua religião da razão apolínea que se ergue sobre o mundo como um deus, ignorando os pequenos labores do número? Ignorando a fita métrica e o alfaiate correndo de parte em parte com seus ajustes e rabiscos... Números, números: mergulhar as mãos neles como quem as mergulha na lama, amassando o caldo numa faina tão humana, enchendo-lhe de perguntas e pequenos amores aos seus contornos e humores tantos.


terça-feira, 12 de outubro de 2021

O que está embaixo

Nadar no mar é muito diferente de nadar numa piscina de clube. Mais leve de boiar, só que eu não sinto isso, e se me perguntarem medidas físicas vou responder: mais pesada a água isso sim, mais pesadas as braçadas.

Mas isso é muito técnico, digamos que a água da piscina fosse pesada. E que às vezes tivesse algas, e quando chove, folhas da rua pra não dizer saco plástico e lixo, espuma escura e aí nem entro. E às vezes fria que dói e basta um mergulho para sair revigorado pulsando e amar a areia, digo, a borda.
Não, a diferença é, literalmente, muito mais profunda. Que aparece na superfície como aquelas ondas malignas que podem te matar, e toda a disputa infernal para atravessar a arrebentação, um cachote que te pega de rasteira, a massa espuma que te cobre a cabeça (e depois horas depois saindo água pelo nariz quando vira de ponta-cabeça). O mar é uma força viva descomunal, e entrar e sair dele é toda uma arte de perigo e contato com o indizível. Eu mesmo passei a caminhar mais pra nadar numa parte mais calma, depois de um ou outro sufoco.
Mesmo assim, já dentro, atravessadas as ondas, já tendo aceito que a saída vai ser uma luta, aí sim é que desponta a diferença do mar. Pois é que, por definição, o fundo está cheio de simplesmente tudo. O escuro do fundo, que não vemos, se estende, indefinidamente, até o horizonte se perder em mil céus de tempestades e outras terras, e no caminho, baleias e arraias, tubarões e águas-vivas, e também, transatlânticos e submarinos, e também
E também fossas abissais, polvos e lulas gigantes, e mais no fundo, o escuro sem nome, e mais além, e mais e mais...
A milhares de metros de profundidade, como uma espaçonave e suas sondas, sabemos tão pouco e que seres são aqueles? Milenares, cegos, comunicando-se por ondas, sob uma pressão estúpida. Que imenso minuto não vigora em suas consciências ultrassubmarinas, sem o céu ou a sombra dele, absolutamente independentes dos astros, e em contato com as aberturas infinitas do próprio chão, com seus vapôres e o que está ainda além, adentro. Não serão eles sábios como os alienígenas intergalácticos que às vezes imaginamos?
Pois se estamos descrentes do que está atrás do céu, e descartamos os "jalequinhos" com suas lunetas... Se queremos voltar à superfície do céu, como sua existência verdadeira, sem projetar nele outros mundos, e assumindo os astros pelo seu pêso real em mim, desenhos imortais na noite dos meus olhos; então o chão que meus pés pisam, sua infinidade de profundezas inacessadas, cavernas e mistérios, minérios perdidos, escavações, não é ele a última fronteira para o desconhecido? O que está embaixo? Não seria o solo o novo espaço sideral: o do profundo, do ilimitado solo em seus níveis e vermes? De volta ao terremoto e ao vulcão, de volta a gêiseres e menires incrustados, de volta às fossas do mar-oceano.
O mar, o mar e o mar, e o sal

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Geoarquia (para ser lido como um "andarilho desmemoriado")

Aprofundando na senda de Hermes, nos passos de mercúrio. Vida de hermes, vida maldita, mal-dizida: biografia mal-escrita, cheia de barrigas e dúvidas divididas. Vida de Hermes mensageiro, levando recados para os outros, perdido nos mapas e nomes. O que está no meio entre duas pontas que nunca se dão: entre dois abismos. Entre o nada e o nada, o ser, entre o oco e a morte lá fora, hermes, mensageiro, atravessando.

Antes de Hermes, Husserl lembrava da Terra não ser "mais um" corpo em movimento: a terra é o ponto de referência dos corpos, por onde se mede o movimento deles. Mas veio a revolução copernicana: decapitada a geoarquia, reinado do hermes. Vidinha de hermes que temos.
Foi assim perdida a Lição de Babel. Que a torre única que reunisse todo o povo - a arquitetura una, a unidade da língua sob um edifício, um único saber um único ser "que se alça aos céus" acima - destruída, a torre caída que vivemos e Babel borbulhante de autofecundação da ruína habitada: Babel a poliarquitetura de saberes, polifônica com suas “muitas vestes”, poliglota cosmopolitéia, poliárquica definição reencontrada.
Babel esse mito, esse obelisco que esquecemos como quem, antes enxergando, perde o foco - e Husserl dizia como quem foca o olhar, e vê, no meio da erguida da Babel, vê lá longe, no horizonte, o outro: e daí funda a primeira horizontal, e daí funda a geofísica. Ele livrava a geometria do olhar dos céus, Husserl se debatia sob a revolução de copérnico. E percebia, com sobressalto: mas e antes, quando os mapas eram “daqui mesmo”? Quando a física era geofísica, antes de ser astral (antes de Newton e sua gravitação)? Antes de metrificarem o Pêso, antes de porem réguas na irresistível atração do Chão, na geoarquia da Terra?
Husserl falava de voltarmos à temporalidade da terra, para quem somos o corpo que se move. Terra e corpos como as primeiras definições físicas, como uma física sagrada. E compreender essa escala (terra e corpos) e sacralizá-la como a "apreensão imediata" – âncora em meio ao mar de apreensões "mediatas" que temos, herdeiros de hermes, viventes de hermes mercúrios e suas mensagens e mercadores, o mediador marchando entre mercados, primo de marte...
Falávamos do chão e topamos com Hermes: curioso falar do 3 em um texto escrito linearmente (não estou relendo) e daí estar como que "prosseguindo, indefinidamente, cenário adentro" (como Babel, indefinidamente subindo). E daí se quero falar do 3 preciso ser como o "andarilho desmemoriado", que procura dar voltas incessantemente, e a cada novo caminho que penetra, experimenta-lhe todos os círculos que pode fazer, ainda que nunca em nenhum momento atinja o centro daqueles círculos, mas em todo momento estar apontando pontos de referência (é, afinal, um passeio) e em meio deles, apontar: veja, o obelisco?
- Está vendo ele? o Hermes? A própria letra?
Seguir a lição de Babel: a Babilônia do livro, a Bíblia é Babel, Báblia Bibléu, bolha bábila bíbila Bíblia Beleléu Babel Babel, o livro, A PRÓPRIA LETRA: seguir um texto de Hermes com sua bússola da ruína habitada, da torre derrubada: e o Norte aponta Mater Matéria em direção ao abandono da forma letra, e mergulho no analfabeto, no além letras: o solo nu (gravidez gravidade, matriz chão, o amorfo, ilimitado)

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

POIS EXISTE A CABEÇA

Pois é meus amigos. Na ponta da marionete inquieta, subindo por membros e espinha dorsal, de repente: vocês não acreditariam.

Clavículas e saboneteiras que dão no vazio, ombros e toda sua dança de gravitação, de início dos braços! de fim de pulmões e gradil de costelas!
Eis que a espinha chegou até ali, e exclama leve, aliviada: cumpriu-se o eixo das duas cinturas, a encruzilhada dos músculos, a linha-mestra cercada dos pilares: dois na frente, dois dos lados, dois atrás, mas não se engane! Os cruzamentos, a dinâmica da marcha, a dança e as árvores que ganham do vento...
Então eis que a subida termina, e enfim, no descanso, no fim dos membros tantos... Os ombros dão até um pulinho, como se não fosse com eles, mas, a surpresa! A subida continua! Existe um pescoço!!!!
Um pescoço!!! Inesperado, eu sei, eu sei, ninguém esperava por essa, e as palmas invadem o salão, gritos de bis, gritos de urra e desmaios, quem imaginaria... As cadeias continuam, os empilhamentos, as descompressões, eis que a catedral avança mais um degrau, um novo andar para o edifício, babel reencontrada e, no topo: a chaminé de fogo: os cabelos subindo como um deus: o peso de 7 quilos e 7 buracos: a pousada dos olhos comedores de luz: sim, a redonda: a esfera: a inaudita-absurda, o ponto cego visionário, a come-come, a cheira-cheira ouve-ouve e a porta dos ventos que nos carregam...
Cabeça querida, te reencontrei flutuando nesse mastreamento cruzado e perdido, nesse navio de velas emboladas, no cordame de nós cegos... Sobre tudo, sobre as águas: cá estou eu ela, cabeça em cima de mim, ou mesmo sob mim (quem disse que não estou ainda uns palmos acima, quem disse a espinha não continua no céu, quem disse o que se passa depois?)
Rainha da marionete, nua rainha deste jogo de órgãos: não é tudo sobre ti, tampouco nada sobre ti: acima, inapreensível.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021


Minhoca de ferro nos túneis de sombra e luz
A escuridão em que mergulhas com teu roçar
teus guinchos tua raspagem do metal no pó
Sibilante serpente subterrânea em que monto
Para brotar, de buraco em buraco

Veloz piscando aparições pela cidade 

sábado, 11 de setembro de 2021


Dia mil, ano zero, e todos os meses se passaram
O sol fura o horizonte com púrpura e dourado
Na bacia abre-se uma flor
Enquanto asas me erguem
Acima e acima,
Minhas longas pernas,
Enterradas até a canela -
Chovem bigornas e âncoras, recebo muitos tiros
Do meu peito brota um rio
Festa de trapos, retalhos, migalhas
E pó, o pó que tudo habita
Espirro como um vulcão
Centauro, meu corpo cavalo pisoteia
Os restos do banquete, as ruínas de abril, bolas de gude
Quebrando minhas unhas com estalo
O alinhamento de marte, mercúrio, vênus e
o globo que trago sob o pescoço
A espada de fogo em meus cabelos
Sim,
Desfrute
desfrute,
desfrute. 

domingo, 29 de agosto de 2021

Adulto (Babel II)

No turbilhão dos dias, imerso em cobranças, aflições, expectativas; imerso em medos, de redemoinho e ritornelo, de ser tragado na repetição infinita do mesmo trauma: afogando-se portanto, nos fantasmas que do futuro assomam e que são feitos dum tecido de sombras que o passado deixou; nesta tormenta! nestes dias escuros! o pensamento se agarra, como uma bóia de salvação, na ideia luminosa, neste sol que nos guia, de emergir: emergir das paixões diuturnas, emergir, emergir do mar revolto, arquear a cabeça acima das ondas e inflar os pulmões oprimidos, como um balão: subir, alçar-se aos céus, como pipa, tragar-se do elemento mar, ao elemento ar, ascender, limpar-se, secar-se, voar límpida alma livre das âncoras que a derrubam e deprimem e reprimem, libertar-se, folha que se destaca da árvore, libertar-se das travas duras que condenam a respiração.

Somos barcos, navios em curso sobre o oceano do tempo. E, do mesmo modo, não o somos. Ao lutar contra as ondas, que refúgio não é, finalmente, tocar com o pé o fundo (e mesmo sem ganhar chão, que prazer de submergir e caçar punhados de areia no leito oculto). Fugindo às ondas, cabeceando pelo fôlego em meio à espuma da arrebentação, roçar a areia, de repente, pisar firme, o chão firme que nos sustenta. E com estes pés, abrir narinas como velas de navio, inflar-se, da terra para o céu, colosso de fundações montadas.
Em resposta então, ao desejo de emergir do turbilhão, a outra ponta do argumento, a ponta que rebenta o dualismo, responde com o desejo de pisar o chão firme. Pois um homem curvado não apenas tem um peso sobre os ombros, de que se livrar: tem o afastamento da terra, que lhe faz perder a base. O sol também cega, o vento com seus uivos nos perde a razão, pisamos pés de barro que se amolecem como uma coluna se dobra e os ombros desmanchando. Sob o oceano, o leito: o solo em que cavamos raízes, em que crescemos árvore - em meio à tormenta, meus pés, são eles que emitem folhas como filhos, e da boca, o pólen que a tudo alimenta. A terra nasce do mar, a montanha rompe a linha d'água como um gigante carregando mundos: adulto, eu sustento cidades sobre meus ombros, eu, caindo em direção ao céu, encalho o barco: sou a raiz em ascensão.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Inexistem as costas

A bem da verdade, o pólo sul é nas costas, isto é: inexistem as costas. O horizonte do meu alcance, quando me arqueio buscando, atrás, conter-me como um globo, não prova meu limite: pelo contrário, é traçar uma ponte sobre o abismo. Para trás, eu caio: é o infinito. Sou uma emersão da carne em olhos e o lado Yin da frente, inatingível pelo inominável de trás. Atrás sou o mundo, eu também, cordão umbilical integral: como se eu deitasse na lama olhando o céu, sem ver meu meio corpo imerso em lama, e a lama é o mundo. Para trás, eu, ilimitado, perco-me da palavra "eu" e disperso meu ser, como a descida da montanha, as raízes profundas da consciência, provindas do todo. Eu, aflorando do infinito que vem de trás: como a terra, aflorando do mar

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Para Amir

Hoje de manhã acordei e de repente estava lendo sobre o que é um tal microscópio eletrônico, e outros meios mais de VER vírus, moléculas e DNA. Tentei entender o mecanismo mas são tantos níveis de abstração, parece que o trabalho está inteiro por fazer... Digo o trabalho de traduzir, o que os cientistas dizem que fazem, para uma descrição do que eles fazem em termos mais... materialistas? empiristas? fenomenológicos?

Nesses anos pra cá eu não sou muito versado em história da filosofia apenas fico mastigando meia-dúzia de conclusões fantásticas. Pois acho que li (ou desli, lire et dé-lire) o Michel Serres falando de planetas junto de átomos, a analogia tem uma familiaridade mas nunca vi explicarem isso. Do meio-dia ao norte (relógios e bússolas), do sol ao átomo com seus elétrons gravitando (do sujeito e seus objetos rodeando), são molduras, que impomos ao mundo.
Sendo uma abstração instrumental, essas conclusões sobre a última astronomia ou a primeira reação química, antes de traduzirem a essência do mundo, são apenas o horizonte dos nossos cálculos. Boto um óculos mais potente, não me enxergo melhor (para isso é melhor fechar os olhos).
Dito isto, eu não sei o que é um feixe de elétrons demagnizando um íon polimerizado ou seja lá o que eles dizem que estão fazendo naquele microscópio que não usa luz mas ímãs. Não adianta fotos do vírus ou da molécula de RNA, eu sei que no meio do caminho houve um salto de abstração: não "acharam" o covid-ele-mesmo; acharam uma alavanca na imensa engenhoca que eles movimentam, e tentam mover a alavanca.
E, do outro lado, não adianta fotos da terra globo, missões a marte, sondas ao universo profundo; a terra é o ilimitado chão que tudo sustenta, o universo é maciço não é vácuo, a vida brota de baixo para cima. E aí vêm as teorias de cometas (o próprio Newton já gostava) outro dia vieram falando que a vida veio de cometas, ou que a água veio de cometas. Que a doença vem de vírus, são pequenos pólens que eles rastreiam, transitando entre massas de matéria receptiva.
Então eu não páro de ver por toda parte a repetição do paradigma patrilinear de identificação da origem: pelo pólen, não pelo receptor. Esse o lado dinâmico. E no lado estático, a concepção do universo por uma figura ex machina de arquiteto com um olho externo ao humano, um olho trans-escalar: eles aboliram a escala, tornando a grandeza uma questão de repetição, e erguem um olho macro-humano ou micro-humano para olhar, como um objeto de dia-a-dia, o átomo ou o sol.
O sol!!! essa mancha impossível, eu vou te dizer, tentando voltar a mim, a encontrar minha escala, que o sol simplesmente não é real, ele é uma ilusão, a ilusão; não me venham fazer maquete em que ele é uma laranja (por que ele é do mesmo tamanho da lua?) ele não existe, ele é o ponto zero cartesiano das minhas coordenadas oculares, o sol é meus olhos; quem disse que o dia é causado pelo sol, e não o contrário, o sol é a borra do dia, o seu umbigo ou seu cu, o sol um buraco onde a luz cai (quem diz que a luz não vai de mim para ele?)
E a doença, meu corpo virando demônio como uma terra brotando erva-daninha, fecundada sim por todas as pás como tudo o é, ininterrupta geração espontânea e eles traçando o pedigree do podre, para criar um inseticida mais potente. Daí decobrem que mais e mais doses da vacina também ajuda, olha acho ótimo tomar sua vacina, só que vocês simplesmente não sabem o que está acontecendo. Carga viral... vai virando uma coisa quantitativa, estatística, uma massa de ruído ao levar ao extremo o uso das alavancas patrilineares do arquiteto
Ah o átomo, como era? no início da física? clinâmen...
Não sei, estou de saco cheio desses sabe-tudos que cagam regra ininterruptamente enquanto o mundo se submete cada vez menos ao que dizem. Gosto dos quadros da Elizabeth segurando um globo terrestre, e saboreando o quanto aquela astronomia lhe empossava enquanto imperatriz do conhecimento. Um conhecimento direto, pré-Kant, que em cada novo binóculo foca melhor o Ser (à sua imagem e semelhança)
Fico laboriando essas ideias vagas e inquietações, muito insatisfeito com a arrogância do discurso dominante, e compreendo tanto negacionismo e conspiração emergindo: é porque eles não fazem o que dizem! O rei ciência está nu, mas estamos terrificados com a brutalidade da anarquia. Com Latour, sempre; e tenho tido simpatia, sem voltar a ler, pelo Immanuel de Königsberg e seus espaço-tempo e tudo mais que poderia estar nos óculos, e aquelas ideias como atratores do pensamento, e enfim a essência só atingível por outros meios (fecho os olhos)
Mas num sentido mais prático, de colocar microscópios e telescópios em seu lugar, seria isso fenomenologia?

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Somos fantasmas

O problema do dualismo é que ele é impraticável: não entendo o seu ponto de vista, e, francamente, tampouco o meu: flutuo em meio ao debate, como uma força invisível que se move por detrás da argumentação: a lógica é um teatro de mecanismos, marionete que movemos, assistindo, fascinados, ao espetáculo.

Figuras de teatro, que montamos: eis o cenário, as palavras e também tudo que vejo e compreendo, o figurino e os muitos panos atiçados pelo vento, rugindo, enquanto massas de nuvens inflam as velas e uma tempestade se gesta em nós. Irradiações de razão, os raios rompem as nuvens acendendo fogo nos olhos inanimados.
Diálogo, em seus muitos níveis, desde aríetes rebentando as portas da torre retórica, marte brilhando sangue; até a mera concórdia de domingo, o tédio vago de mastigar palavras. Mas sobretudo: no que atravessa entre dois pontos de vista, no que vibra as plásticas figuras que moldamos e remoldamos, nos rastros que deixamos, nós habitamos. Somos fantasmas, rasgando raios na calmaria, pelo simples terror de inexistir. Que é de mim, senão o raio que vibrou um dia? Em ricochete entre a minha e a tua montanha inerte...
Um sopro endemoniado, indo-e-vindo entre pulmões obcecados com a existência (em meio à robotização, em meio à medicalização, em meio ao niilismo e o apocalipse, são ainda deuses que se derramam nos seus olhos).

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Babel

Tratava-se unicamente de defender uma postura. Todas as perjúrias ao olho do sol, à desmedida, à babel que rebenta, tinham este fim. Um fim bem pequeno, ou melhor, um fim no tamanho que temos: a filosofia de ficar ao sol; de abrir os olhos e apreender a abóbada celeste, a linha do horizonte, o solo ilimitado que nos sustenta, e ter, nestas apreensões, a essência do firmamento. Um estar aqui, integral, essencial.

Explico: não precisamos de lunetas ou microscópios, de mapas ou cálculos, para apreender a essência da terra. São instrumentos, permitem passeios, mecanismos, previsões; mas nada dizem sobre a essência das coisas. De volta a Kant, a essência da terra provém da apreensão imediata que temos.
Importância da questão da inexistência do vazio. Remexer o fundo do sentimento que isso inspira: a finitude da terra. Somos finitos sobre algo que também é finito, dentro dum universo praticamente vazio? Ou pisamos no ilimitado, num universo maciço?
Se usar os instrumentos muda o sentimento de estar no mundo, tornando-o mais frágil; se tenho o solo firme e infinito para meus pés, mas, pela triangulação dos astros, de repente ele fecha os horizontes como um umbigo no pólo sul, me lançando num vácuo sideral; o solo firme então se esboroa como um torrão impotente ante o nada, abundante. A razão, desmedida, se alça ao olho do sol, que então nos vê nesta geometria inumana, extraterrestre.
De volta ao solo, ao eu, como pode a matemática da luz, os astros e suas rotas, descer como uma tesoura cortando o cordão umbilical do meu horizonte como uma gota isolada? O mapa-múndi é um mapa, o globo terrestre é uma representação, não é a terra. Está correto enquanto instrumento para a astronomia e sua filha cartografia. Mas não é a terra.
A escala não é neutra. Coisas imensas são muito diferentes de coisas minúsculas. Voltar a isto, à apreensão da grandeza como um mistério, sem reduzi-la a uma repetição geométrica; sem reduzir o monumento à maquete, o colosso à miniatura. Os números foram planificados, domesticados, linearizados; mas as quantidades são medidas reais. Como dizia o outro "Tem uma cola entre os números, infinitos números em abismo entre 1 e 2".
Voltar a isto, deslinearizar a apreensão imediata que temos. Uma fenomenologia primeira, uma relação essencial com o estar aqui. É este o mundo. Os instrumentos me permitem voar. Mas não alteram a essência ilimitada. A grandeza não se torna pequenez ao fazermos uma maquete; ela segue sendo grandeza, impossivelmente maior do que eu, infinita para meus pés.
Babel e suas muitas línguas: à pergunta de alçar-se ao olho do sol, a resposta dos múltiplos olhares humanos, dispersos em todas direções do horizonte.



sábado, 17 de julho de 2021


I've no idea what I am talking about
I'm trapped in this body and can't get out
a alma é anarquista, pois abole o corpo: falar é lançar o corpo no abismo: o abismo dentro do abismo (olhar em seus olhos) emitir a alma pela boca e corpo som
já tínhamos o vento! meus pulmões o criaram
sou eu a unidade do universo inteiramente eu mundo sem final
afinal sou matéria
afinal não sou matéria
rebenta alma em sempre existir sempre
indassim

explode anarquia na abolição do corpo em seu som

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como raízes de grama, os cabelos invadiram a pele (sou eu o pólen entre poros e pelos, plantação de mim: e meus magmas das vísceras (sou um planeta) meus órgãos imensas naves de um milhão de seres vegetais e a terra, a terra erigida em monumentos de impossível vitalidade, a terra moldada na água de desenhos vegetais) e o abismo da luz em meus nervos, quando a terra brota olhos

e um nariz

o espaço sideral é um gramado
as estrelas são bocas magníficas de emersão da luz em desenhos
o sol é meu umbigo, meu nó inverso de existir, a outra ponta do meu nervo
eu sou o mundo

"e todos os lobos viraram um: leviatã, o imenso peixe"
que engoliu uma ilha: éramos robinson erguendo casas qual porquinhos (e casas de doce ou doces para vovó), nascidos nos mitos, para sempre atravessados pela irrupção noturna do sonho 

terça-feira, 13 de julho de 2021

Para Stefano


Estruturas de som: desenhos. Riscos de notas vozes (lembro das mãos num piano e seus muitos dedos, cada um, rompendo o silêncio) lento arco nas cordas e as pausas, as cordas fazendo a descida.
Ouço isto (é Bach, violoncelo) e a vitrola faz zumbidos elétricos quase tão altos quanto a música; há uma torneira aberta num tanque com seu choro d'água; há as vozes dos vizinhos, e o som da minha pele roçando; o sol em plena coração da cor, corando (é dia lindo, os passarinhos, cheiro das árvores ao fundo, uma roupa boa, um bom sofá)
Delicioso disco zumbindo no violoncelo que de repente ataca intempestuoso
riscando estruturas, catedrais rabiscadas
(em meio aos zumbidos, insetos, o som distante do rio)
-
tomando chá de capituleira, sítio das brisas
primeira lua nova pós-solstício de inverno
prestes a avistar vênus forte colado ao marte bem apagado

terça-feira, 6 de julho de 2021

Mico

O miquinho era pequeno e no início eu achei que o piado era um passarinho conversando mas era a mãe piando alto "meu miquinho! meu miquinho!" e eu percebi isso quando fui olhar pela janela e eis que vi: no play do prédio tava o miquinho piando, era um filhote que caiu ali e não conseguia mais subir de volta o muro que segura a encosta do morro.
Descendo tinha Renan o zelador que chegou bem nessa hora e nós tínhamos uma escada (que não era alta o suficiente) e ele subia nela alucinado e, num átimo vinha o salto da vitória - ele não alcançava e caía no chão horrivelmente até que - sim ele subiu! então vitória e a plateia no prédio uma avó com netos e mais auma moça na outra janela e um cachorro latindo grou! grou! no primeiro andar.
Só que vira e olha e o miquinho assim. Tá todo acuado, tá atrapalhado demais, e pula mas cai do muro, só que cai numa fresta uma vala de drenagem sei lá. Uma vala muito profunda separando o prédio do muro de contenção e cacete ele parou de piar, não se vê mais ele: morreu, Renan desceu por uma porta de visita dentro da fresta mas ela tinha altura de quatro andares e nada do bicho.
Morreu. Não vimos corpo mas. Também tem superpopulação de miquinho hoje em dia...
Será que só pioramos a situação? Levando a escada.
Já em casa, a mãe mica fica piando sem parar. E a gente toda hora espiando ver se algo aparece, sei lá. É que Renan lá embaixo com a lanterna uma hora achou que viu um rabo entrando no cano que subia... mas se enganou...
E uma espiada dessa, esperançosa, janela afora, eis que vemos pasmos o miquinho passar subindo silencioso de lá de baixo e se meter no mato.

domingo, 27 de junho de 2021

É no fundo uma questão religiosa, pois trata-se da demarcação do milagre no mundo, e de sua ausência. Pasteurizaram o mundo, demarcando-o desencantado, não-milagroso. Uma máquina de mecanismos desalmados, rangendo sua inércia limpa. Como esvaziando a sala de seu ar, em busca do inexistente: povoaram o mundo de vácuo entre átomos. Perdidos no sexo dos anjos Alma e Matéria, traçaram a fronteira rígida de onde começa a cosmogonia - criação do mundo - e a deixaram silente. Big Bang não inicia nada, não explica nada. É no fundo e sempre uma questão sobre a origem das coisas, se nada se cria, ou se existe uma criação infinitesimal mas abundante. Voltar a incluir as ilhas dos bem-aventurados - a utopia - como um horizonte terreno: Gênesis no presente, deus não se ausentou, pan-divindade. O ato genético inaugura utopia no mundo, criando o movimento: Aquiles ultrapassa a tartaruga. 

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Chuvosa manhã de inverno

Olhando longe, lá nas árvores e no morro, tudo riscado por esse véu de cinza-branco: e o som de chhh chóóó bem suspiradinho mas vezes mil. Acordei manhã bem cedo e além disso os passarinhos-grilos, por toda parte. Mil pontinhos: como um cobertor que tudo envolve, chove nas plantas.

E frio. A poucos dias do solstício de inverno, o sol muito encolhido, e as massas frias de vento chuva, esse céu cinza descendo em gotas como fragmentos caídos, em monte, em levas. Vento desenhando nos riscos descendo, e o som: quando ela aumenta chááá quando diminui silêncio.
Um cobertor: todo som abafado, tudo amortecido e: vitória absoluta de eu estar no quentinho, no protegido, assistindo. Fico tão contemplativo. Está bem forte agora, e de lado, inclinado: de manhã cedo era impossível levantar, e tão delícia ficar te ouvindo, só assistindo. O sono, indescritível atavismo de milênios contemplando a chuva, e os pássaros alçam voo, coitados: agora está bem forte e o vento forma ondas desenhadas no ar, como o mar posto em pé e as ondas batem de lado na minha janela.
Contemplar a chuva, de mente vazia como um cobertor: simples momento, infinito. Aqui, está tudo: e todo o resto, a pilha de gatilhos, é abafado no grande chááá que exibe claro: não tem nada além de agora, aqui, e é só isso um dia a cada dia, saborear as belas coisas em meio à tempestade.
- andré aranha

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Basear a filosofia por sobre os temas mais simples da percepção: colocar-se nos olhos do lago e brincar com seus vizinhos, borrar as palavras com o universo de outro corpo.
Jamais o exagero de imagens vazias dos românticos: por mais que bonitas, não revelam lógica intrínseca, são isoladas umas das outras. A realidade-nuvem é regida por extensas leis de comportamento.
- E se as nuvens não são um banquinho, pra gente lamber o céu?
- Não seria o capim longos cabelos da terra, onde o vento escreve? Quando dizem das plantas não terem movimento próprio é por desconsiderar a brisa como parte de seu corpo.
Como escrever o mundo concretizando metáforas românticas, que o mar seja mesmo vinho e embriague? Se teus olhos forem estrelas, a noite está repleta de mulheres no escuro.

- andré aranha, 2007 

quinta-feira, 3 de junho de 2021

domingo, 23 de maio de 2021

Para descer


descobri
no fundo do meu ombro
estava sempre ali
num túnel duro, um
buraco de agulha que nunca se fecha e
na verdade
era por onde respirava.
Lá do outro lado dessa pele-osso-eu
espremida entre as placas de eletricidade
os dínamos de leão
a massa atômica
a caldeira, o motor-mundo
a fera e as jaulas, as grades, os dentes
minha alma minúscula.
Como um pequeno andré
um serzinho, homúnculo
migalha de gente
ali ficou presa, embalsamada.
Como abrir, novamente,
o ovo
banhar-me no amarelo da gema mole
espremida entre os pulmões, pingando
dentro de minha barriga, por cima das tripas
e rins, amarela, amarela, pegajosa
quem foi que disse que um raio não parte o mesmo coitado de novo e de novo
como machadadas caindo do céu
sou dividido por uma guilhotina ao meio
minha alma... fica no meio
atingida em cheio
de resto, quem inda tem alma hoje em dia?
uma porta, um poço no meio de um
onde ele pode cair, afundar
onde transborda infiltra inunda encharca
olhem este homem! banhado de alma até os dedos!
pingando! pingando azul-cinza-roxo-lilás
amarelo-sol
as manchas de alma
pela cara, pelas calças
a língua passeia
gotículas de lindo no meu braço
os pêlos arrepiados dançam
irrompo um carro setenta cavalos a quatro nós,
o vento de barlavento a bujarrona, a
parafuseta os pistões o timbre, catapulta,
aríete, ictiossauro pássaro fênix de molho pomarola borbulhando ácida,
tem spaghetti hoje no cerebelo,
jantar de todas as dores e caprichos risos
entupo. ignito. implodo.
jorra champagne do chão, levito alguns centímetros