Hoje a água da torneira tava saindo quente que nem sei. Procuro o botão do chuveiro elétrico mas tá desligado há semanas. Pra quê toalha? Acho que o ideal é ficar de roupa molhada. Não entendo bem a transição entre o molhado refrescante da ducha, e o molhado abafado do suor pingando. Por que que suor não refresca?
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
PELO AMOR DO GELO
Boto uma compressa de gelo equilibrada na cabeça, no ombro, no pescoço, como um amuleto que esfrego tentando pensar. Como é o inverno? Falei no telefone um amigo no meio da neve. Essa palavra sozinha já derrete mal meus olhos leram. Não dá pra pensar em frio hoje. Que isso. Horas e horas, não dá nem pra cochilar de tarde.
Quisera um ar-condicionado, em traição a toda a revolta contra seu uso excessivo, a toda a recusa de sacralizar o frio e se agasalhar e amar o barulhinho tímido ronronando pra dormir; quisera um ar, entre amado e odiado, amuleto do desperdício e da arquitetura desalmada, contradição da terra tropical com a nossa insistência em trabalhar, em pensar friamente, olhando para uma tela de computador, em meio a essa descida massiva de luz laranja como um inferno, 40 graus hoje, sensação térmica de panela fervendo, deixa até tonto. Corpo pirado. Nem sei o que fiz, trabalho confuso.
Sol se pôs agora. Vitória, caramba, sobrevivemos. Alívio. Acho que o que mais fiz hoje foi aguentar mesmo. Que que o sol tanto tem que fazer nesse dia pra ficar assim tão perto. Deve ter uma boa razão. Quanto a mim, só lamento.
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André Aranha
sexta-feira, 22 de janeiro de 2021
Uma estrela risca o céu e se apaga
Os antigos - Alexandre o Grande se punha nu às estrelas, despendia noites e noites no deserto seco absorvendo a astronomia - o desenho revelado. Quanta distância temos disto, quanta explicação nos dizem disto, quanta história, quanto cálculo e racionalismo; o céu está ocupado de Razão herdada, já nem o vemos...
Na noite expor o corpo, os olhos à imensidão vazia, o foco no infinito (dizem: é ver o infinito, focar o infinito - e dizem como se fizesse sentido). Atravessando o céu ver um hemisfério do zodíaco de constelações, metade da carta celeste sempre exposta, um hemisfério inteiro. O globo terrestre é gêmeo do globo celeste do céu que nos aparece na terra - por onde se fundou a cartografia, a medida da terra o mapa, pela medida do céu.
Mas o chão é outro hemisfério, ainda que, óbvio, andando ele não é uma cuia imensa - é plano ou rugoso ou mil. O olhar arredonda as coisas, arredonda esse aqui e horizontes, arredonda o céu.
Ver a lua em exato quarto crescente, iluminada só a metade e metade negra: esfera iluminada exatamente pelo lado. Lua no alto do céu e o sol se pondo, é o sol que a ilumina mas ele não parece estar perpendicular a ela (para pegá-la de luz só pelo lado): quando os olhos descem do alto do céu para o horizonte já há o arredondamento (o sol parece estar embaixo da lua) o céu é uma abóbada arredondada pelos olhos.
Voltar a ser mais cego (menos mapas, menos leituras) e o céu, antes de ser tanta astronomia e cosmologia de planetas e vácuo, é um efeito ótico: o céu é uma verdade ocular. Nem existe "céu", só vazio de ar em toda direção; céu é meus olhos. Céu de olhos que arredondam o horizonte: círculo do horizonte centrado no aqui, a visão se levanta desde meus pés, do baixo para o cima, até onde a vista alcança. O horizonte está no meio dessa ascensão, um pouco abaixo do meio (eu me ergo do chão) o chão me aparece como uma cuia, sou uma câmera "olho de peixe", vejo o mundo como uma esfera ainda que me equilibre na sua planitude. O céu é um efeito ótico: o sol é uma derivação interna à ocularidade, e os olhos recebem verdades deste foco do princípio vital de luz no mundo: plantas, calor...
Fechar os olhos (os sonhos não são vistos, não são nem vividos: outra coisa se vive; o sonho já é lembrá-lo, o que aconteceu antes do despertar tem outro nome, é inominável) botar-se no escuro, limpar os olhos de seus fantasmas: manchas de visão. No fundo do olho do mundo bóiam manchas fixas de constelações. E em meio delas (ver o mundo a partir de si, a partir de baixo: parar de se imaginar o Uno que pega o mundo num globo, jamais pegaremos o mundo num globo: somos formigas vendo cuias e com olhos cheios de fascínio que de repente veem riscar os furos do manto negro, riscar o manto furado da noite do mundo do sono) uma luz risca o céu e se apaga.
Só às vezes a estrela cadente é vista por todos: coincidências de sonhos. O céu é o mundo do sonho, da noite.
De volta a um radicalismo de revolução kantiana que põe no sujeito - na sua maneira de apreender o mundo, essa mediação - os principais eixos que definem o objeto-mundo que nos aparece. Kant falava de tempo e espaço (relógios e bússolas) que impomos ao mundo, da lógica encadeada que impomos ao mundo. Dar mais um passo nessa direção: o corpo é a chave, voltar a Protágoras "o humano é a medida de todas as coisas". Refazer a revolução copernicana, reacessar a astronomia - a abertura do ar ao infinito e os desenhos que aparecem no fundo. Absoluto fascínio da revelação material do céu estrelado, onipresente.
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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021
O computador está lento como uma tartaruga. Ou talvez seja a internet. Eu não me importo, estou lento como uma tartaruga. Os pensamentos, os pensamentos estão lentos. Estagnados. Empoçados.
Lembro da alegria de Mautner em resumir a vida na simples assertiva de que só a alegria é séria: a tristeza não tem seriedade posto que foge da vida; a alegria é a apreensão profunda que deseja o eterno retorno de cada momento, e por isso existe integralmente (a tristeza desmancha)
Nem todo mundo é apreciador do silêncio, ou do sol batendo, ou de caminhar algumas quadras distraído. Mas aí é uma alegria tão sutil que quase some, gosto que nos deixa na boca uma lembrança boa...
Por que não a vida ser ela mesma alegre e eu somente me deixar carregar por ela? Desse grande arbitrário que é a roleta caos dos encontros. Desse caos desse ininteligível. E submeter-se a ele, aceitar somente aceitar toda essa Razão ininteligível... ou preencher o caos de sentido, de narrativa justificativa causas efeitos... deixe-me livre de tanto sentido...
Deixe-me livre de tanto sentido
Estar alegre e ainda assim estar de luto, estar alegre e ainda assim estar triste, dissolver a alegria num deixar-se levar pelo que o mundo alimenta... é uma alegria tão fina, ela quase some
Frente à resposta brusca da nossa cultura (então vá, tome uma atitude) eu me agarro a uma alegria incremental. Do incrementalismo e das finas alegrias sutis, livres de tanto sentido. Subir ao céu de gozo como a babel impossível, de respiração em respiração, acolhendo as feridas sem garantia de tocar nunca o infinito - apenas, gradual levitação, um pé de cada vez, e lá vamos um pouco mais...
Tristeza não tem fim: é que ela se desmancha, reticências alegres
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André Aranha
sábado, 9 de janeiro de 2021
Da dupla armadilha
(andré aranha)
O pensamento conservador, que impera, tem um duplo argumento: se você rebate um, é difícil rebater o outro.
O CONSERVADOR – Vivemos a escassez. Um regime de tempo: o inverno. Vivemos a falta, a disputa; e as promessas de abundância e generosidade são falsas – ilusões da irresponsabilidade. Dinheiro não dá em árvores; dinheiro é contado – é um número fixo – como moedas de ouro que são o valor em forma concreta. Tenho ódio à impressão de dinheiro. Tenho dificuldade de falar de crescimento, de nascimento, de como isso ocorre. Tento permanentemente normalizar a existência dos bancos, de todos os intermediários, como mediadores transparentes e neutros. Viva a moral da formiga, poupando no inverno. Há pouca coisa, e há acumular o seu, de uma colheita dada; há poupar.
(Entra, em nossa ajuda, o economista desenvolvimentista – defendendo estatais e falando de gastar e criar impostos)
O DESENVOLVIMENTISTA – A economia não é só isso! Não é só a repartição de uma colheita – há a decisão de plantio, a produção multiplicadora. Não é só inverno, uma disputa do improduzível – há primavera, há verão. Há produzir e toda aposta no nascimento (no futuro) e sem ela não vivemos. As contas não fecham nem nunca vão fechar, o desequilíbrio é estrutural. Estamos sempre expostos aos riscos do futuro, é uma imensa rede coletiva de compromissos com o amanhã: o dinheiro. Uma gangorra pendendo para adiante, sempre ameaçando adernar. O dinheiro em si já é um empréstimo, e dívida pública – dívida desse grande banco central – é o próprio nome do dinheiro, essa promessa futura em circulação: o país é um grande banco e sua dívida é o saldo nas contas dos habitantes – e a estabilidade do dinheiro não é “não-imprimir” ela é a saúde do organismo todo – as importações a distribuição de renda as cadeias produtivas os bancos os bancos-países estrangeiros as bolsas de apostas... – Shhh!
- Shhhh!
(entra em cena o segundo argumento)
O CONSERVADOR – Não importa nada disso. As moedas, o inverno, são uma ficção. Um conto de fadas, um instrumento: você não entendeu nada. Não importa se há escassez: vivemos a injustiça. Quer soltar as amarras da irresponsabilidade fiscal que seguram esses bandidos corruptos?
Políticos são pessoas, no duro, egoístas, irresponsáveis, injustas: são maus por natureza. Privatistas sem respeito à lei, sem respeito aos outros. O que o Estado faz, é para alimentar eles: compra de votos, patrimonialismo, imediatismo: é isto o que produzem as eleições. Eleitores levados por símbolos vendidos, sem fidelidade partidária, sem causas públicas sendo relacionadas ao seu voto. Voto comprado barato por um Estado corrupto, com famílias de vigaristas, muito suborno, muita impunidade. A sujeira de como as coisas realmente funcionam – o desrespeito à lei, a marginalidade. A captura do Estado e seu desvirtuamento.
Temos de controlar esse lado corrompido. Esmiuçar suas contas: caçar os desvios. Policiar, policiar o coletivo – você quer a ladroagem? Você vai botar seu dinheiro na mão da ladroagem e achar que ela vai te trazer de volta em dobro? Você esquece da Injustiça!
(O desenvolvimentista é vaiado pelo público, e se afasta. Entra o democrata)
O DEMOCRATA - A Política não é só isso: auditorias, policiamento, tentar ser transparente até sumir... Também são possíveis mercados de votos – eleitores investindo poder em seus políticos e apreciando o resultado para reelegê-los – com relações positivas para a sociedade. Não são currais eleitorais cegos, comprados por superficialidades e pelo engano: a Justiça do político pode ser garantida por classes econômicas específicas orientadas, em seu voto, por um programa de ações públicas; como relações de troca entre eleitorado e políticos: sem submetê-los ao Policiamento. É possível sim a construção da Justiça e portanto de políticos representativos com autonomia para gastar em nome de todos, a partir de referentes coletivos como o Bem-Estar Social, o Ambiental, a Cidadania... – Ah,
– Ah, meu amigo...
O CONSERVADOR (vendo que o desenvolvimentista já foi afastado) – Você não vai acreditar, mas eu concordo inteiramente consigo. Podemos sim construir uma boa política - conte comigo. Só temos é que sempre respeitar a matemática fria das moedas contadas. A escassez de fundos que o Estado vive. A dívida pública. Estão muito bem os seus ideais – eu os partilho, juro! – mas estamos em tempos de vacas magras... Não temos dinheiro, só temos dívidas com nossos bancos... A Justiça é possível, mas que fazer da Escassez?
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Eis a Tesoura do Conservador, com que ele rebenta o pensamento da coisa pública. A Tesoura da Escassez e da Injustiça, que defende a Plutarquia. Para enfrentar suas duas lâminas – qual delas faz o corte? – é preciso fazer reunir e compor, desenvolvimentistas, democratas.
sexta-feira, 1 de janeiro de 2021
sexta-feira santa
(andré aranha)
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Você sai para um lugar muito amplo e escuro, um enorme saguão de rodoviária, vazio, à noite. No meio, uma pracinha de cidade do interior, com degraus de pedra, cheia de... seres. É o sabá das bruxas.
Há tochas e fogueiras distantes, vultos de danças, homens baixos peludos, com pernas de bode - um deles te afronta com chifres, querendo cheirar seu rosto!e há risadas, vinho barato, facas de ferro e grandes estandartes rasgados. Passa uma sombra de cavaleiro segurando dois cajados cruzados (como no mito) e você percebe que de fato É sexta-feira santa, dia satanista por excelência - mas num flash de dia você vê a maioria dos seres (não todos) de volta à forma de estátuas numa loja de arte folclórica - e o flash volta ao sabá
Você olha para trás e tem um cara, ou uma sombra, ou três caras seres sombras espetando com a bengala a SUA sombra. Você sai correndo e se esquiva do cavaleiro de sombra no chão, e volta para dentro do salão iluminado da rodoviária.
Ambiente mais calmo, tem burburinho de fundo, a rodoviária cheia: você procura conversar sobre os diabos com as pessoas dali, dizendo todo tipo de asneiras como que é "muito interessante", e "imperdível". Encontra mínimo apoio, disperso, mas já se convence a sair de novo, com um livro, e sai. Só que passou da meia-noite: agora são só estátuas. Você é um lorde
Você é um aristocrata do antigo regime se declarando a uma donzela sem rosto e falando do turbilhão satânico do carnaval que atravessa séculos, casos de jovens que entravam em 1623 e só reapareceram em 1746:
Você começa a narrar extensivamente um discurso analítico todo medido sobre a definição exata da magia (ou chamem como for). A ciência a medicina a política a astronomia as empresas o futuro tudo está cheio dela, não há desencantamento, há as vertentes que ficam de fora (o fauno) e, não que pudessem ficar dentro, mas perdemos os mediadores com elas - e para o problema ECONÔMICO do mundo precisamos ir muito fundo nisso: porque é a batalha da abundância e da escassez, vivemos o inverno a preparação do inverno somos formigas acumulando
E no meio desse enfeitiçar hipnotizar com as palavras você súbito beija a figura de pedra mas sua boca parece cheia de biscoito e você diz isso, tentando engolir; é um beijo seco como areia, e sua língua se desmancha no chão.
dreamtime, traumzeit. Hans Peter Duerr. 1985
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