sábado, 27 de fevereiro de 2021

A SAÍDA DO MAPA

Queridos livros com que me cerco. Gostei tanto, ontem, de desempacotá-los. Abrir cada caixa da mudança, como um embrulho de presente, e redescobrir que os tenho: em cópia impressa e muitas vezes anotada, amassada, minha.

Livros, biblioteca, estante de impressos que me protege e me cerca no escritório que vou montando. Livros, nos quais tento dosar minha crença: se quero tanto adicionar os meus, que a tudo resumem; se quero tanto deliciar-me nos grandes e verdadeiros, que a tudo resumem. Mas se no fim são só palavras, são sobretudo palavras empoeiradas, roupas que vestem o mundo e o sentido está no mundo e nos corpos de sangue e alma; são só resumos, somas, sínteses. Está bem o valor do mapa, para quem está perdido - mas que importa o mapa, se estamos cegos?
Então livros que não são somas, que não são resumos. Que esquivam a utilidade, que distraem do sentido. Em que os olhos (essas glândulas, esses gânglios, essa distração dos músculos) repousam, brincam. Desenho do gesto do rio de palavras, meus olhos piscando
Sair do escritório adentrando uma oficina de papéis, suspender o mapa, desenhar portas e corpos outros, desenhar o sangue, desenhar almas e
romper a palavra, a roupa rebenta em trapos, escrita jorrando como um cano
abolição do encanador
A biblioteca, a prateleira, a selva de páginas de que me cerco: como um castelo de que sou rei: como um navio de que sou a vela: como um banquete comido lento
Rompido o sentido, liberto o sentido, encontro o sentido. Olhos parados no horizonte, distraída leitura, caneta balançando sem rumo
dragões invadindo pelas bordas do mapa.
-
andré aranha

Nenhum comentário:

Postar um comentário