O mundo do dinheiro (esse número) é o mundo da medida.
A moeda tem três funções: unidade de conta, reserva de valor, meio de pagamento. Esta última, dizemos que entendemos: é o dinheiro com que pago. Entendemos a do meio: guardar o dinheiro, a riqueza, ao longo do tempo. Mas a primeira - unidade de conta - parece estúpida
Nem entendemos a do meio, na verdade.
E a última é um mistério.
Por muito tempo se insistiu em começar a entender pela última: o trocado que permite o escambo livre do mercado - daí nasceu o "monetarismo".
Vejamos, por nossa conta, a função do meio: um produto que preserva o valor, através do tempo. A reserva de valor é a função direta, real, de indivíduos específicos com vastas somas de poder econômico: a riqueza (e seu controle político ao longo do tempo) que impera sobre os trocados.
E a primeira função, a unidade de conta? É a superestrutura jurídica, a rede coordenada, burocrática-tecnocrática (aspirante a mecânica) que reproduz o sistema em que se preservam as reservas de valor. O “sistema” numérico. A medida,
A moeda, em suma, deve ser compreendida (deve começar a ser compreendida) pelo jogo destas duas primeiras funções: o sistema da medição (unidade de conta) e a manifestação direta deste sistema (reservas de valor específicas).
É preciso vê-la com os olhos dos bancos, que as imprimem, mais do que com os olhos dos pobres que as anseiam ter nas mãos.
Direto ao ponto, sobre o tal dinheiro, sobre a tal economia:
Temos 3 restrições, da mais geral para a mais particular, nesta ordem:
(1) imperialismo (a necessidade do dólar)
(2) luta de classes (salários, inflação)
(3) capacidade produtiva (taxa de reinvestimento da produção para ganhos da própria capacidade produtiva)
A partir daí é pra gente usar e abusar.
Sempre que existem recursos ociosos (desemprego, material ocioso, falências generalizadas) está sobrando capacidade produtiva (3). Dito isto, não existe restrição de uma espécie de "poupança financeira", da qual o Estado necessita para poder aumentar o reinvestimento da produção. A restrição ao crescimento e à acumulação ampliada é imposta como imposição POLÍTICA em meio à luta de classes (2) e ao imperialismo (1) - o teto de gastos, o ajuste fiscal. Ela não é restrição "produtiva" (3); o conceito de "poupança" macroeconômico é um resíduo, o final de uma história com 3 etapas (gasto autônomo, originário > multiplicador da circulação > saldo residual poupado). O ponto de parada, o final da história.
Precisamos voltar ao início da história e entender a emissão do dinheiro - como um banco.
Muito legal isso de com quem o dinheiro foi parar, como um trocado circulando. Mas e a fonte? E a emissão de dívida que tantos agentes privados realizam crescentemente, como parte de sua estratégia de lucro? O estágio primeiro, daqueles que decidem QUANTOS ativos financeiros vão ser emitidos; muito legal as medidas da régua, mas e a régua ela mesma?
Em uma economia não-dolarizada (questão delicada aqui na periferia global) o Estado é um hiperbanco que nunca pode se endividar demais, em moeda própria, a ponto de não poder se endividar mais ainda. É que a moeda ela própria (esse resíduo, esse final da história; o meio de pagamento; o fluxo de renda que circula) não tem para onde ir a não ser emprestar ao governo (os seus portadores podem fugir, vendendo-a no mercado de câmbio, mas quem comprá-la continuará sem o que fazer senão emprestar ao governo).
Erram muito falando de "impressora de dinheiro". Não é o dinheiro "meio de pagamento", o papel-moeda que circula, que é o importante. É a emissão, pelo Estado, de poder de compra em geral; são todos os seus gastos, emissões que ocorrem diuturnamente e são canceladas (pelo funcionamento orgânico da economia) pela incidência de impostos sobre o ritmo de acumulação, e que se consideram "sustentáveis" conforme a economia cresce (hoje medida pelo PIB) mas na verdade conforme as restrições (1) e (2) são atendidas - imperialismo e luta de classes. Essa "sustentabilidade" é a manutenção (e ampliação) do sistema de reservas de valor (os gastos, a circulação orgânica na economia), o sistema da unidade de conta.
Não há um "produto", um "meio de produção" chamado dinheiro nacional, que precisamos, enquanto Estado emissor do tal dinheiro, acumular. Não existe restrição de poupança financeira: é para isto que servem, no mundo financeirizado de hoje, a Dívida Pública e o sistema do Banco Central garantindo sua compra para manutenção da taxa básica de juros - é o alicerce do sistema de unidade de conta e reserva de valor. Se, organicamente (pelo uso direto da capacidade produtiva da economia), se cresce a economia mais do que esse juro, temos a tão-falada "sustentabilidade da dívida pública" (Ciccone, 2008, estendendo a análise do multiplicador de Haavelmo, 1945, e que está prevista como "expansão financeira sustentável" do Estado, na "perversa aritmética monetarista" de Sargent e Wallace (1981), como "senhoriagem" definida amplamente incluindo tanto emissão quanto uma dívida pública que cresça menos que o PIB (p.6, final do lado direito)). Repetindo, essa "sustentabilidade", ou mais amplamente a manutenção do sistema de reservas de valor (os gastos, a circulação orgânica na economia), é o sistema da unidade de conta.
As restrições superestruturais que nossa economia enfrenta são o imperialismo (a inserção internacional do país) e a luta de classes; não há restrição "de capacidade" financeira, ligada a bancos. Não "faltam" bancos ou "poder financeiro". O Estado é (pode ser) banco, gerando, através de suas aplicações, uma taxa de acumulação e de nível de crédito (como se o Estado "desse lucro", se sustentasse financeiramente) crescentes, sustentando renovados e acrescidos dispêndios (e planejamento de longo prazo).
O "verdadeiro" poder de emissão do Estado é como uma versão hiperpotencializada de uma emissão (IPO) de ações, de uma alavancagem financeira corporativa que resulta em patamares mais e mais elevados de acumulação. Em suma, se querem tanto pensar o Estado como uma empresa, entendamos a banalidade que é, no capitalismo de hoje, alavancar-se permanentemente e crescentemente. Que é isto de ser banco? O Estado é banco, e é nossa estúpida teoria monetarista (toda fascinada com o "meio de pagamento" e uma visão apolítica da circulação mercantil direta) que insiste em separar conceitualmente os "bancos públicos" (BB BNDES Banerj CaixaEconômica) do "Banco Central" e do "Tesouro Nacional", e imaginar que existe uma hora em que se "liga a impressora". Essa separação tripla é a essência do monetarismo profundo que tudo confunde nas finanças públicas do país. Obra-prima do fetichismo.
Ciccone, 2008, e a macroeconomia da Demanda Efetiva: