sábado, 27 de fevereiro de 2021

A SAÍDA DO MAPA

Queridos livros com que me cerco. Gostei tanto, ontem, de desempacotá-los. Abrir cada caixa da mudança, como um embrulho de presente, e redescobrir que os tenho: em cópia impressa e muitas vezes anotada, amassada, minha.

Livros, biblioteca, estante de impressos que me protege e me cerca no escritório que vou montando. Livros, nos quais tento dosar minha crença: se quero tanto adicionar os meus, que a tudo resumem; se quero tanto deliciar-me nos grandes e verdadeiros, que a tudo resumem. Mas se no fim são só palavras, são sobretudo palavras empoeiradas, roupas que vestem o mundo e o sentido está no mundo e nos corpos de sangue e alma; são só resumos, somas, sínteses. Está bem o valor do mapa, para quem está perdido - mas que importa o mapa, se estamos cegos?
Então livros que não são somas, que não são resumos. Que esquivam a utilidade, que distraem do sentido. Em que os olhos (essas glândulas, esses gânglios, essa distração dos músculos) repousam, brincam. Desenho do gesto do rio de palavras, meus olhos piscando
Sair do escritório adentrando uma oficina de papéis, suspender o mapa, desenhar portas e corpos outros, desenhar o sangue, desenhar almas e
romper a palavra, a roupa rebenta em trapos, escrita jorrando como um cano
abolição do encanador
A biblioteca, a prateleira, a selva de páginas de que me cerco: como um castelo de que sou rei: como um navio de que sou a vela: como um banquete comido lento
Rompido o sentido, liberto o sentido, encontro o sentido. Olhos parados no horizonte, distraída leitura, caneta balançando sem rumo
dragões invadindo pelas bordas do mapa.
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andré aranha

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O BANCO CENTRAL É UM BANCO

O mundo do dinheiro (esse número) é o mundo da medida.

A moeda tem três funções: unidade de conta, reserva de valor, meio de pagamento. Esta última, dizemos que entendemos: é o dinheiro com que pago. Entendemos a do meio: guardar o dinheiro, a riqueza, ao longo do tempo. Mas a primeira - unidade de conta - parece estúpida
- é porque somos cegos.
Nem entendemos a do meio, na verdade.
E a última é um mistério.
Que é o dinheiro?
Por muito tempo se insistiu em começar a entender pela última: o trocado que permite o escambo livre do mercado - daí nasceu o "monetarismo".
Vejamos, por nossa conta, a função do meio: um produto que preserva o valor, através do tempo. A reserva de valor é a função direta, real, de indivíduos específicos com vastas somas de poder econômico: a riqueza (e seu controle político ao longo do tempo) que impera sobre os trocados.
E a primeira função, a unidade de conta? É a superestrutura jurídica, a rede coordenada, burocrática-tecnocrática (aspirante a mecânica) que reproduz o sistema em que se preservam as reservas de valor. O “sistema” numérico. A medida,
A moeda, em suma, deve ser compreendida (deve começar a ser compreendida) pelo jogo destas duas primeiras funções: o sistema da medição (unidade de conta) e a manifestação direta deste sistema (reservas de valor específicas).
É preciso vê-la com os olhos dos bancos, que as imprimem, mais do que com os olhos dos pobres que as anseiam ter nas mãos.
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Direto ao ponto, sobre o tal dinheiro, sobre a tal economia:
Temos 3 restrições, da mais geral para a mais particular, nesta ordem:
(1) imperialismo (a necessidade do dólar)
(2) luta de classes (salários, inflação)
(3) capacidade produtiva (taxa de reinvestimento da produção para ganhos da própria capacidade produtiva)
A partir daí é pra gente usar e abusar.
Sempre que existem recursos ociosos (desemprego, material ocioso, falências generalizadas) está sobrando capacidade produtiva (3). Dito isto, não existe restrição de uma espécie de "poupança financeira", da qual o Estado necessita para poder aumentar o reinvestimento da produção. A restrição ao crescimento e à acumulação ampliada é imposta como imposição POLÍTICA em meio à luta de classes (2) e ao imperialismo (1) - o teto de gastos, o ajuste fiscal. Ela não é restrição "produtiva" (3); o conceito de "poupança" macroeconômico é um resíduo, o final de uma história com 3 etapas (gasto autônomo, originário > multiplicador da circulação > saldo residual poupado). O ponto de parada, o final da história.
Precisamos voltar ao início da história e entender a emissão do dinheiro - como um banco.
Muito legal isso de com quem o dinheiro foi parar, como um trocado circulando. Mas e a fonte? E a emissão de dívida que tantos agentes privados realizam crescentemente, como parte de sua estratégia de lucro? O estágio primeiro, daqueles que decidem QUANTOS ativos financeiros vão ser emitidos; muito legal as medidas da régua, mas e a régua ela mesma?
Em uma economia não-dolarizada (questão delicada aqui na periferia global) o Estado é um hiperbanco que nunca pode se endividar demais, em moeda própria, a ponto de não poder se endividar mais ainda. É que a moeda ela própria (esse resíduo, esse final da história; o meio de pagamento; o fluxo de renda que circula) não tem para onde ir a não ser emprestar ao governo (os seus portadores podem fugir, vendendo-a no mercado de câmbio, mas quem comprá-la continuará sem o que fazer senão emprestar ao governo).
Erram muito falando de "impressora de dinheiro". Não é o dinheiro "meio de pagamento", o papel-moeda que circula, que é o importante. É a emissão, pelo Estado, de poder de compra em geral; são todos os seus gastos, emissões que ocorrem diuturnamente e são canceladas (pelo funcionamento orgânico da economia) pela incidência de impostos sobre o ritmo de acumulação, e que se consideram "sustentáveis" conforme a economia cresce (hoje medida pelo PIB) mas na verdade conforme as restrições (1) e (2) são atendidas - imperialismo e luta de classes. Essa "sustentabilidade" é a manutenção (e ampliação) do sistema de reservas de valor (os gastos, a circulação orgânica na economia), o sistema da unidade de conta.
Não há um "produto", um "meio de produção" chamado dinheiro nacional, que precisamos, enquanto Estado emissor do tal dinheiro, acumular. Não existe restrição de poupança financeira: é para isto que servem, no mundo financeirizado de hoje, a Dívida Pública e o sistema do Banco Central garantindo sua compra para manutenção da taxa básica de juros - é o alicerce do sistema de unidade de conta e reserva de valor. Se, organicamente (pelo uso direto da capacidade produtiva da economia), se cresce a economia mais do que esse juro, temos a tão-falada "sustentabilidade da dívida pública" (Ciccone, 2008, estendendo a análise do multiplicador de Haavelmo, 1945, e que está prevista como "expansão financeira sustentável" do Estado, na "perversa aritmética monetarista" de Sargent e Wallace (1981), como "senhoriagem" definida amplamente incluindo tanto emissão quanto uma dívida pública que cresça menos que o PIB (p.6, final do lado direito)). Repetindo, essa "sustentabilidade", ou mais amplamente a manutenção do sistema de reservas de valor (os gastos, a circulação orgânica na economia), é o sistema da unidade de conta.
As restrições superestruturais que nossa economia enfrenta são o imperialismo (a inserção internacional do país) e a luta de classes; não há restrição "de capacidade" financeira, ligada a bancos. Não "faltam" bancos ou "poder financeiro". O Estado é (pode ser) banco, gerando, através de suas aplicações, uma taxa de acumulação e de nível de crédito (como se o Estado "desse lucro", se sustentasse financeiramente) crescentes, sustentando renovados e acrescidos dispêndios (e planejamento de longo prazo).
O "verdadeiro" poder de emissão do Estado é como uma versão hiperpotencializada de uma emissão (IPO) de ações, de uma alavancagem financeira corporativa que resulta em patamares mais e mais elevados de acumulação. Em suma, se querem tanto pensar o Estado como uma empresa, entendamos a banalidade que é, no capitalismo de hoje, alavancar-se permanentemente e crescentemente. Que é isto de ser banco? O Estado é banco, e é nossa estúpida teoria monetarista (toda fascinada com o "meio de pagamento" e uma visão apolítica da circulação mercantil direta) que insiste em separar conceitualmente os "bancos públicos" (BB BNDES Banerj CaixaEconômica) do "Banco Central" e do "Tesouro Nacional", e imaginar que existe uma hora em que se "liga a impressora". Essa separação tripla é a essência do monetarismo profundo que tudo confunde nas finanças públicas do país. Obra-prima do fetichismo.
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andré aranha
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Ciccone, 2008, e a macroeconomia da Demanda Efetiva:

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

EDUARDO PAES E O FUTURO DO RIO

Moro há 4 anos na Lapa, no centro do RJ. E lá vem de novo o projeto de cidade turística.
Urbanismo caro, de vultosos investimentos. No centro do Rio de Janeiro. Região central de uma grande capital do Brasil industrial.
Turístico. De serviços, de moradias e restaurantes; imobiliário. Que vem como uma avalancha sobre o centro da cidade.
E a crítica a isto é um debate localista sobre gentrificação de bairros, de setores específicos da sociedade. De encarecimento de uma parte, de expulsão de pessoas.
Mas quem anda pelo centro do rio se impressiona da quantidade de oficinas, de estoques, de galpões com máquinas antigas. Imóveis antigos, ruas antigas, meios de produção volumosos, e uma imensamente dispersa e despadronizada massa de proletários; (em cada oficina de carro, em cada serralheiro; em cada feira, em cada fretista, cada marcenaria, cada galpão de estoque).
Quando imagino a avalancha da especulação imobiliária, lembro das gráficas da Gamboa e os milagrosos impactos do Porto Maravilha. Gentrificação, pois certo. Mas meus olhos são muito atraídos pelas oficinas e estoques e revendedoras de peças e pequenas metalurgias e usinas de produção. Aço. Siderurgia. Metalurgia e indústria gráfica, antigos bastiões da indústria brasileira no Estado do Rio de Janeiro.
Vi aquelas lojas fechando, e as redes de complementaridade e simbiose e (por que não?) inventividade entre as muitas médias empresas e todo esse ecossistema econômico - se desfazendo, sendo obrigados a migrar, a perder somas, a dispersar trabalhadores qualificados.
Uns diriam "É o processo natural, de obsolescência!" e imaginam que, por trás dos irrequietos voluntarismos humanos, operam vastas leis inclementes (somos passivos serventes de seus desígnios... mergulhamos no esquecimento do eu, dionisíacos do niilismo) se recusando a participar da Consciência que arquiteta intencionalmente esse mercado: o Estado: a convenção da nossa ação coletiva.
Não, o Estado deve ser sempre negado como pensamento, é sujo, é corrupto, é político! Podendo ser qualquer coisa, é sempre fruto de um pacto, um conluio; o Estado é esse cartel que somos e negamos, reiteradamente, esperando o pesadelo acabar.
Jane Jacobs, a escritora jornalista que tanto iluminou o urbanismo ao descrever as simbioses dos ecossistemas-bairros, tanto residenciais (e a questão da segurança, dos muros, das praças) quanto os industriais-mistos - ela demonstra, em seu A Economia das Cidades como é esse "ecossistema econômico territorializado" em uma região das cidades, e que precisa ser alimentado. De nada valem vultosas plantas industriais no meio nada, cercadas de cidades-anãs-dormitórios (turísticos). É a simbiose em permanente transformação dos bolsões de médias empresas que se criam ao longo de muitas décadas em bairros (como na Gamboa, como na Lapa) é esta a fonte da abundância - desde a Revolução Industrial, desde a Revolução Agrícola engendrada pelas cidades, desde a Mesopotâmia e a primeira cidade, diz ela.
O Rio de Janeiro, o Estado do Rio, o Brasil - continua em um mergulho dionisíaco no niilismo, querendo "entregar-se", "abandonar-se" às mãos de outros (do mercado, dos estrangeiros, dos profetas que sei eu) em vez de tentar assumir as rédeas do seu destino. Como disse outro dia: "não há opção" (ah somos corruptos demais para o desenvolvimentismo, somos ineficientes demais para as estatais) - não há opção, não há desenvolvimento "inconsciente", pelo simples largar-se às marés do mercado. Sempre há o Estado fornecendo os eixos da acumulação - é niilismo negá-lo. A economia é decidida - temos arbítrio, sempre. É uma convenção, o dinheiro é uma convenção, um crédito, uma finança - ele não é uma máquina super-eficiente, uma peça de troca, de facilitar escambo; sua origem está no político, no poder dos reis, no crédito.
O Rio de Janeiro, o Estado do Rio, o Brasil - padecem de uma industrialização largada às cegas, de largos espaços de tecido urbano com herança industrial, com pulverização de meios de produção. Somos uma nação avançada, comendo poeira há 40 anos mas ainda fortemente capitalizada para retomar uma das disputadas vagas do crescimento global.
Cadê, eu pergunto, nossa política industrial? Nossos investimentos estatais pesados na CEDAE como contratadora de produções de grandes empresas (que por sua vez demandam de produção local seus insumos, e temos aí os ecossistemas crescendo) auxiliadas pela Universidades Públicas, para tomar a dianteira mundial da produção de Saneamento (essa questão do futuro)?
Cadê a articulação das nossas reservas de petróleo, com nossa indústria petroquímica e seu complexo de médias empresas (essa fonte do desenvolvimento, essa fronteira dos químicos e dos plásticos) "esperando" a boa-vontade do mercado (dirigido pelos estados americano, chinês, europeu...) enquanto o governo brasileiro cruza os braços?
Pois bem, Paes irá produzir sua soja, atrair seus dólares de curto prazo. Que pode ele? é só um político; e se o problema está em nós e não neles? Porque mais uma vez adiamos o controle dos nossos eixos industriais, que pouco a pouco se desfazem, e o Brasil come poeira; gentrificamos o centro do Rio, como mais uma privatização desgovernada. É divertido, no mais, lançar-se à História sem nenhum planejamento. Talvez tenhamos sorte e caiamos, pelas graças divinas (desse deus negado, desse mergulho dionisíaco no niilismo social) numa sociedade mais justa, numa economia da abundância. Até lá, oremos - é carnaval.
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andré aranha 

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Fora Whatsapp!

Não sei se vocês lembram do Tamagochi, aquele brinquedo dos anos 90. Novidade eletrônica, parente de Gameboy. Muito antes do celular, lembro que médicos e pessoas importantes tinham um pager que bipava. Agentes secretos tinham Walkie-Talkie. E as crianças brincavam com Tamagochi.

Era um aparelho pequeno, com um bichinho na telinha que você podia criar. Ele exigia comida e brincadeiras, periodicamente, e ficava apitando quando tinha fome, ou tédio. Para atender a isso, bastava ficar apertando os botõeszinhos, e vendo a animação tosca de pixels se fartar. Bichinho virtual.
Tenho essa sensação de que o Tamagochi não foi embora, ou que é ele o elo perdido que explica essa evolução estranha que não entendemos mais. É como se - talvez seja exatamente isso - o Tamagochi tenha crescido. Mudou de nome, é claro. E engoliu meus amigos.
Amigos, de uns tempos pra cá (digamos 10 meses, quase 11, não sei por quê) são coisas parecidas com links - são aplicativos dentro de uma telinha do console - são bichinhos virtuais que eu alimento apertando botõezinhos. E tiro uma satisfação limitada disso.
Que diferença um gato de rua que faço carinho, e aparece querendo um prato d'água; que diferença o gambá taciturno, aproveitando a permissão tácita da noite para fuxicar o jardim; que diferença esses pesadões humanos que ainda encontro e balanço a língua em palavras cospidas (acho que estou ficando mais surdo, mais embrulhado na fala, mais distraído) e às vezes pingam suor e cheiro rindo.
Nada disso: agora só whatsapp. Nunca escrevi tanto na minha vida. Amizades verbais. E memes. Stickers. Amizades hieroglíficas, ô tempos... O Tamagochi agora se chama Smartphone e a fome dele é um númerozinho verde no aplicativo, quanto tempo eu gasto contigo...
Mas que inferno isso!!
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andré aranha