quarta-feira, 22 de novembro de 2023

DAR BOM DIA APÓS A MEIA-NOITE

A civilização humana encontra-se à beira do colapso. A aurora das máquinas e do tempo moderno nos separou da natureza... O relógio vira os números em zero-zero, o ponteiro inclina-se em riste para o alto, o cuco badala em algum apartamento perdido: meia-noite. E a partir dessa hora, no escuro do breu, ouve-se, em resposta a um tímido e fraternal boa-noite, em um tom de correção severa: bom dia.
Estapafúrdio desejo de dar bom dia apressadinho, quase um desafio moral: já iniciei o dia, e vocês, ainda dormindo, ainda flertando com a cama. Eu, já de pé, trabalhando: bom dia.
E 12 horas depois, o relógio inteiro se girou, os ponteiros alçam-se novamente ao alto enquanto números mudam de am para pm: boa tarde?
É o caralho, darei bom dia o dia inteiro. E se sentir escuro darei boa-noite, essa é minha política naturalista.
E por acaso os dias não incluem a noite? "Naquele dia, à noite..." então vou dar bom dia o dia inteiro, 24 horas de bom-dia ininterrupto, misturando-me aos moralistas da madrugada estarei varando bom-dias mas num dia único: numa terra que não gira, meu cumprimento ergue-se ao sol e nele fica, minha língua solar, bom dia!
Como dizer "hoje" após a meia-noite e ficar sem saber de quando se fala, ou pior ainda "amanhã": acabe-se, língua! Quero apenas a luz como marco do tempo. Limbo ao calendário, não vou nem falar em horário de verão. Sentir o tempo na pele queimando sol.
Nunca escrevi cartas a papel (que eu me lembre, talvez os adultos mo tenham forçado na infância ignota) então por mim o bucólico é mandar emails, que inicio, romântico: "bom dia..." "boa tarde..." segundo a hora que escrevo. Mesmo que só vão me ler à alvorada, ou dez dias (e noites) depois: "Bom dia, favor não enviar SPAM, grato". Boa tarde.
Mal dia, bom dia, médio dia e tarde noite madrugada alvorecer mormaço breu, o céu cheio de cores e eu só ligado num interruptor. Que sono, que importam os extremos das 12 horas se neles durmo como um rochedo ou almoço copiosamente a ponto de perder-me do tempo, orgias soníferas e gulosas no alto do ponteiro: eis-me aqui em paz, finalmente, com o sol.

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