domingo, 21 de novembro de 2021

A montanha


É bonito que
mais adulto e mais peso de responsabilidade
e a secura a dureza a frieza a lonjura
como uma montanha de rocha fria e
É divertido (é bonito) que
ela se ergue em alegria e então
quando a montanha dança
um gigante carregando mundos, um muito adulto
e o peso que ele arrasta e
Então é leve a dança
a montanha sobe feito uma nuvem

sábado, 20 de novembro de 2021

De volta


Esvaziar a mente pelos dedos
Página vazia: e te invado
Ou nem sou eu, meus dedos
A febre que borbulha e
Se esvai
Limpar o fundo dos meus olhos
- como um pano úmido
a retirar pó -
O pó que se amontoa,
E minha mente uma biblioteca empoeirada
Um cemitério, uma ravina seca empedrada
Tirar-me o pó como um lavrador retira pedras
e limpa a terra
Despejar-me na escrita
Como um despejo que me limpa
Dessa poeira, sufocante
Não quero desenhos desse pó, no papel
Não dar-lhe nomes, entroná-lo
Multiplicá-lo, rebatê-lo em espelhos
Trazê-lo para dentro da família, case com minha prima, coma do meu jantar
Te ignoro
Hoje, te varro como quem joga fora os embrulhos do correio
Uma semana toda curvado sob teu pêso cinza
Mastigando tuas correntes cinzas
Farejando teu rastro estéril para te cortar, teia de vidro que sufoca tudo
Mas hoje livre
Te espano com um espanador de penas compridas
Sou de volta um homem
E durmo, em primeiro plano,
E preparo uma boa salada no almoço
E visito minha avó para colher-lhe o cafuné
E não faço nada
Sou só e vivo, vivo,
vivo simplesmente e sim.
Da poeira, eu a espirro para bem longe

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Do nariz

Vacinado, encontro amigos, tiro a máscara, patati patatá entre cuspes e lambidas, eis que sinto frio no nariz.

Saco a máscara do bolso e sou escorraçado como incoerente. Meu nariz, meu doce nariz (oh obra-prima pontuda), por que não posso te cobrir, independente dos micróbios?
Quero cobrir-me a face como um eco perdido de burkas, cobrir-me o rosto com um véu. Oh! por vergonha dos lábios tremendo, sim, por pudor do hálito e do bigode. Como um antigo, os cabelos ocultos sob o chapéu, e as boas maneiras de retirá-lo, respeitoso. Pois por respeito a ti, pelo resguardo da intimidade, me guardarei da tua leitura labial, abafarei minha voz. Em nome do nariz quentinho, ah, não me venham com teorias de contágio, estou falando da moda, da moda imperiosa e suas repressões; estou falando do véu, e da nudez!
Já tínhamos a máscara! Era meu protesto lacrimogênio. Vândalos mascarados rebentam vidraças de bancos e somem no anonimato. Mas hoje as máscaras estão invertidas, chegamos ao oriente. Pois a babilônia subiu mais um degrau, avançando as roupas e sua nudez imantada: moral repressora, e no reverso, tímida luxúria dos narizes tocando, com um leve roçar. De volta à vergonha e a intimidade, erguemos burqas como princesas ocultam a beleza proibida, e os olhos pulsam de personalidade.
Assim vestido e desvestido, frequento a máscara como um boné, tirando e botando, e botando certo e errado, para horror da moda e todo seu arsenal bélico. Que a nudez se funda em violências e proteções, e cada escudo se torna também um fecho a desatar: tiro-te a máscara para um beijo rápido, a pele desacostumada ao vento e ao sol, tua pele protegida apenas para mim: cueca, calcinha da face!
Um novo patamar do beijo, eletrizado: tesão louco de te ver narinas-boca, descobrir-te dentes que talvez sorriam: a face desbanalizada como pura intimidade - e daí à autoridade de ignorar a lei do véu, como um bruto mijando em público, e impôr inteiramente o rosto no vagão. Alto lá! Peguem-no!

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Números, números, pequenos diabinhos. Mergulho nos números ao longo de meses, incontáveis. Olhinhos zonzos das tabelas, gráficos e proporções. Sair dos números como quem volta de um país sem língua, sem ar, sem sol, trazendo minérios profundos. Enfrentar a massa de números como quem arruma um quarto atulhado de roupas e cobertores, dobrar e passar, enfileirar, conter. Conter os números, conter seu caos de vírgulas e múltiplos! Como um eletricista, e seu emaranhado de fios, por horas procurando o mais amarelo: como um cozinheiro, enchendo de tempeiros e provando o gosto, da sua sopa de água e pedra. Números números, imagino um gráfico perfeito mas quando o faço - elegante mapa do tempo e da verdade fria - me pergunto: haverá no leitor o fôlego de nesses números também entrar, quererá o leitor essa página recheada de somas e porcentagens, ignorará ele tudo que digo, em nome de seus preconceitos e caprichos, em nome de sua verdade sem números, seu amor às coisas brutas inúmeras, sua incontabilidade nata, seu desprezo pelo ábaco e pela régua, sua religião da razão apolínea que se ergue sobre o mundo como um deus, ignorando os pequenos labores do número? Ignorando a fita métrica e o alfaiate correndo de parte em parte com seus ajustes e rabiscos... Números, números: mergulhar as mãos neles como quem as mergulha na lama, amassando o caldo numa faina tão humana, enchendo-lhe de perguntas e pequenos amores aos seus contornos e humores tantos.