terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A BAUHAUS (casa da formação)
1919 - por Gropius, 36
O progresso da técnica mostrou como uma forma de trabalho coletivo pode conduzir a uma produção total maior do que um trabalho autocrático de cada indivídua.
O artesãpa tornou-se com o correr do tempo um apagado decalque daquela vigorosa e autônoma representante da cultura medieval, que dominava toda a produção de seu tempo e era técnico, artista e comerciante em uma só pessoa. Sua oficina migrou para a fábrica, deixando-lhe não mais do que uma loja. O processo do trabalho escapou-lhe da mão e elha se converteu unicamente em comerciante sem contato com a matéria, atrofiadua em uma natureza parcial, incompletua. Perdeu a capacidade de formar discípuluas; as jovens aprendizas foram deixados às fábricas onde a mecanização lhes embotou os instintos criativos e tirou-lhes a alegria do trabalho.
A indústria continua a lançar no mercado um sem-número de produtos mal ENFORMADOS, enquanto es artistas (e outras inventores de utopia) lutam em vão para aplicar projetos caros, pouco versáteis, pouco flexíveis. Os artigos produzidos mostram apenas nuanças decorativas de tendências cambiantes de gosto, sem o sentido estrutural que brota do conhecimento dos novos meios de produção.
Propomos arrancar a artista criador do seu distanciamento do mundo e restabelecer sua relação com o mundo real do trabalho. O campo de atuação do artesãpa tornar-se-á parte orgânica da unidade de produção da massa. Propomos insuflar sentido direto e vida no produto de massa e no lar, na maquinaria prática da vida. Desrobotizar o indivídua.
A base dessa formação é um curso preparatório no qual se visa desenvolver a humana inteira que, a partir de seu centro biológico, possa encarar todas as coisas da vida com segurança instintiva e esteja à altura do ímpeto e do caos de nossa Era Técnica. Só quando se desperta cedo uma larga compreensão para as cambiantes relações dos fenômenos da vida se pode oferecer uma contribuição própria ao trabalho criativo do seu tempo.
Após o preparatório, cada estudante trabalha em uma oficina, onde estuda com uma mestre de artesanato e uma de projeto industrial. A meta principal é produzir artigos padronizáveis. Embora os modelos sejam feitos à mão, uas projetistas têm de fiar-se nos métodos de produção em escala industrial e por isso passam por um período de trabalho prático nas fábricas. Inversamente, as fábricas enviam às oficinas trabalhadoruas experientes a fim de discutir as necessidades da indústria.
Todas as produções denotam um certo parentesco: constituem resultado de um espírito coletivo desenvolvido consciente ou inconscientemente, que se cristaliza nas personalidades mais diversas. Esse parentesco se baseia na necessidade de produzir coisas de um modo simples, autêntico, em concordância com suas leis. As formas não são o resultado de modas, mas a combinação artística de inúmeros processos de pensamento e trabalho no domínio técnico, econômico e da criação formal.
A concepção da unidade fundamental de toda criação opõe-se diametralmente à ideia da arte pela arte e à filosofia ainda mais perigosa da qual ela se origina, do negócio como um fim em si. Propomos gerar esse novo tipo de colaborador industrial, que reúna em sua pessoa as peculiaridades dua artista, do técnica e da negociante. Levar as aprendizas a um contato íntimo com os problemas econômicos. Contra a ideia de que a capacidade artística possa sofrer se lhe aguçarmos o senso de praticidade, demora, incerteza e desperdício de materiais.
A criação é um grande gasto livre, mas quando pronta, finalizada, pode ser feita em massa, medida barata a toduas. Descer a escala do dinheiro, desconcentrar para proliferar o bom produto. E assim fundar uma gramática da forma e da plasmação da forma. As figuradores, projetistas, enformadoras (dedicadas a enformar - dar fôrmas - ao mundo), devem aprender uma linguagem da forma: a base que venha guiar a mão plasmadora e permitir que as unidades produtivas trabalhem em conjunção harmoniosa. Como na música, onde o contraponto é um sistema supra-individual de coordenação no mundo tonal. O desenvolvimento dessa teoria pela academia malogrou porque esta perdeu o contato com a realidade.
- Albatroz André Aranha

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

JA É...........NA LÍDERMAGAZINE
hoje passei pelo presépio de umas igrejas
natal... natalidade nascimento ignição
natura da cognatura nome numus
bebês não saem do chão. o presépio está errado
ele é sobre um momento depois do parto
a apresentação a todos os animais
o presente dos reis
a estrela no céu
não é sobre a natalidade em si mesma
uma mulher de pernas abertas
"maria na manjedoura"
daí a bonecos de neve?
gorro e luvas vermelhas,
descendo por uma... uma o quê? chaminé?
nesse calor?
(talvez pelo buraco do ar-condicionado... um ladrão?)
isso pra mim só atrapalha entender o sol
o início do verão
recomeço do ano, férias
e o calor, o mar
cultura idiota: não se liberta do gelo de terras imaginadas
a cidade Metro, utopia da medida
colonizados: fazendo de conta que são da Metrópole
que coloniza essa terra
aos que gostam da bíblia, o seu menino de jesus
é um mito da monogamia = saber identificar se é esperma ou se é deus
antiga cerca do homem sobre a mulher
essa história - de milagres - vem caminhando
pelos shopping centers, outdoor shows e demais powerpoints
com seu reverso gêmeo, mortal
- se para deus funciona assim, para o mortal funciona assado
aqui na terra, se trata de trepar e fazer filhos, é assim que vêm
família, árvore de natal e presentes, dádivas
13° salário furando o ano, prenúncios de carnaval
grandes encontros familiares, comida e revéillon capricórnio
que se trata do "bom velhinho" trazer presentes pelo furo da família?
ele entra pela fumacinha do corpo-casa
e deixa seus presentes (natal, os espermatozóides chegaram)
-
R. EMAT, O EUNUCO - "Acho mais razoável supor serem aliens, não deus"
Albatroz Rem At

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

LAVAR A LOUÇA
1.
a pessoa lava a louça que tiver usado
2. 
a pessoa lava a louça de quem cozinhou o que ela comeu
(obs. muita gente divide, quem cozinha, e quem lava - quem não sabe cozinhar só lava)
3.
se a pessoa chega na festa já almoçada, e estão servindo almoço,
não é ela que vai lavar a louça alheia
4. 
repare na pessoa que arruma o espaço onde você chega 
pra passar o teu dia de lazer.
você não almoçou a comida da casa. por que você deveria lavar a louça?
você não sujou nada. por que deveria varrer o chão?
veja justamente essa pessoa que arrumou o espaço
(esse espaço que tão bem te recebe)
ela garante isso tudo - nada que se preocupar então.
tá bonito, tá bonito! aqui você passa seu lazer.
afinal de contas,
você não sabe nada dessa pessoa
que está sempre correndo por ali
arrumando mesas
- você mal chegou!
passa o tempo,
muitos aqui mal chegaram também
mas quem será que arruma a casa?
será quem fez uma comida e almoçou nessa casa?
mas por quê pensar tão longe?
ela parece gostar
de fazer isso
5. era uma vez umas pessoas
que convidaram outras pessoas para passar o dia
durante um esforço enorme - um mutirão
cada pessoa entende isso de um jeito
(algumas entram no mutirão)
outras assistem, e veem um mutirão de servos a servir o nada
e se sentem rainhas, em seus mundos
< exorcizar esse fantasma, por toda parte
garçons, mordomos
cozinheiros "chef" que só recebem ordens
haver empregada, criado
e turistas, sem noção das cozinhas da casa >
isso é haver um desnível
humanizar as máquinas, sem desumanizar humanos
essas pessoas fazem tudo parecer tão fácil
vamos falar um pouco sobre mandar e desmandar
e sobre servos
assuma algo para si!
ninguém tem que te dizer isso.
ao menos lave a louça!
foi passar lazer - num lugar de resistência?
não percebe que tá sonhando o sonho alheio
o sonho do criado
turistas
- CéU

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Romance
Era um amor como nunca se havia visto. Se preparem que vai dar calafrios. O amor devorante dum casal que nunca mais se quer separar. Afinal quem come quem?
Sabe-se que a amizade em graus febris pode levar as companheiros a pactos por meio dos quais fazem-se cortes nos dedos um da outro e os cortes são aproximados, ligando o sangue para sempre. Mas o amor de espíritos se traduz num abismo de assimilação e fusão no corpo amado. E o casal divisou um rito que poderia aplacar sua ambição insaciável. Parecia havê-lo visto nalgum texto antigo, hoje ignorado pela fria cultura do amor virtual, sem a fome táctil que hipnotiza.
Pois bem, era então aniversário de seu amor e véspera de uma despedida prolongada, e durante o sexo, quando os corpos ofegam por tornar-se um, num coito terrível enfiaram-se os dedos mínimos uma na boca da outro, e no baque do clímax, gozando corrido os dentes fecharam na carne amada para engolir e serem engolidas uma parte de amor no dentro do ser.
A cicatriz e a falta daquela parte compensavam por haver agora por todo o seu sangue e carne um toco exatamente igual do corpo amado preenchendo-lhe o dentro. Aquele gosto brutal... Nossa história poderia parar por aqui, e se somar ao rol das expressões extremadas de amor, na fronteira entre o delírio e a adoração. Mas isto seria ignorar o fato mais pungente nesse caso, que este sim os tomou de um furor faminto, pois ao se reencontrarem, o casal só tinha um pensamento: prosseguir na mútua devoração, no ser devorado e no devorar do corpo amado. E uma vez que o amor prova o gosto do sangue, mas mais ainda, uma vez que o corpo sente-se acuado ante a avidez amante, e só pode responder-lhe na medida em que vê naquela avidez a sua própria, refletida e multiplicada como espelhos travados de fronte um ao outro, onde não há mais predador nem presa mas um contínuo voraz de fomes sanguinolentas e um desejo oculto de desaparição numa boca de amor, aí não haveria instituição moral que os impedisse de continuar.
Pois quando tocavam os tocos vazios de um na outra sentiam vertigens amorosas que lhes atravessavam por completo. E assim que refeitos, se escolheram os artelhos do pé, ou pequenos nacos da coxa e da perna, subindo pouco a pouco, na gula dos presentes apaixonados, sem saber se queriam dar-se à comida ou provar mesmo a fome, sem perder-se no sangue de presas afiadas cortando corpo e amor de beijos provados. E passavam noites em núpcias procurando a parte que caberia agora sacrificar à paixão. Devorados os dedos, e essa fome implacável, prosseguiam portanto, e aos poucos tornavam-se deficientes, e as atividades físicas se dificultavam. Mas estavam ali, juntas, um para apoiar a outro e caminharem escoradas, siamesando-se tarados. A partir daqui nosso relato perde o testemunho fiel, pois o que sucede beira o desconhecido na experiência humana. Conta-se que seus corpos tornaram-se aos poucos duas metades amalgamadas num único ser, enlevado pela redenção de duas almas coladas, amorosa utopia da devoração.
-
Romântico Canibaltroz Rodrigo Costa

terça-feira, 10 de novembro de 2015

cuidado com o maníaco da cozinha
ele fica olhando, no cantinho
distraídamente......
atrás da porta.......
você nas louças, torneira, pratos 
e no canto 
o maníaco
te espreitando, te olhando agudo os olhos no fundo
pupila preta aberta te vendovendovendovendo
ah e você
sai de andar pela casa
acha que viu um vulto
(ficou assim
com coração fraco, tão
frágil dos nervos.
não pode tomar susto que grita!
depois inda treme
(outro-dia na-cozinha
tomou mesmo foi um choque, só do sustinho,
nunca viu, assombração?)
o maníaco da janela
maníaco datrás da cama
do armário
do lavalouças, ah!
melhor acender a luz,
será?
se estiver assim
sem sossegar
achando que precisava voltar e
olhar de novo aqueles quartos vazios
tome cuidado, muito cuidado
com o maníaco da cozinha.
que ele te aguarda
sem ninguém saber
e você de repente
num quarto vazio
sem falar nada, dizer
misteriosamente no escuro
olhos abridos, grandinhos
espiando..... espiando......
-
Algodríaco Costanigo no escuro atroz

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

http://dontpad.com/albatroz
escrever aqui
tudo que você digita fica
-
-
a escrita deve ser abertura
não esse fechamento em pirâmide
para glória ao palco e à passividade do corpo
fazendo shhhh
com seus auto falantes
luísa
querem traçar a cerca da propriedade privada - a letra
no comunismo da oralidade
as palavras são da língua seus bobos
que liberdade lhes restará?
http://dontpad.com/albatroz
só na terra comum jorra a abundância
na sua represa, sua empresa com assembleia de diretores e votos contados, o rio acaba

domingo, 18 de outubro de 2015

EXTRA EXTRA (e... tomara!)
Nova página Albatroz ultrapassa todas as expectativas.
Depois de 3 meses num modelo fechado, as autores/administradores decidem parar com as regrinhas e convidar quem der na telha. Autonomia de convite.
" Percebi que, em vez de reservar uma página só pra gente e ficar pra sempre nisso, era muito melhor usar ela pra juntar um grupo grande, diversificado, com que poderemos fazer algo maior " declara o consagrado Breno Goz.
Com a enxurrada de conteúdo autoral chegando, além das revistas semanais, será lançada uma versão jornal, grande como as asas de um albatroz. E na hora de imprimi-la, uma vez por mês, as reuniões serão acirradas, grande batalha da anarco-curadoria.
Birras, castigos e votações furadas, ficam para trás! Em vez de nos frustrarmos punindo o pouco que temos, vamos mudar o foco para dedicação aos textos. Abundância de textos, de quem quiser entrar. A página como receptor universal, de livre uso. E o petit comité, a curadoria editadorial, será para avançar a impressão e venda da versão papel.
-
Esperando que a profecia seja realizada
André Albatroz

domingo, 11 de outubro de 2015

Sento para escrever sobre as moedas. Tenho tudo preparado. Desenhei, em meu caderno, maravilhoso óculos de palavras: dois redemoinhos de perguntas sobre o ouro. Basta digitá-los, líneos.
Mas sou sacudido pelo encontro no chão. Estou no quarto de um amigo. Vamos chamar ele de Antônio Albatroz. Encontro um papel, do seu banco, do seu último mês.
São as dívidas ao banco. Ele devia 700. Pagou uns lanches, às vezes sacou 20 reais. O banco chupa 90, cobra 20 pelo serviço, e vamos a 900 devidos. Mês que vem, o juro é maior.
Eu poderia emprestar-lhe a grana. Mas e cobrar? Emprestar mil, dizer: tens um ano. Doze meses... minha poupança renderia 70. Eu podia emprestar muito barato pra ele, e valer a pena. O banco me paga 6 por mês, cobra 20 pelo serviço, empresta a minha grana pra oito pessoas além do Antônio, de quem cobra 20 pelo serviço, mais 70 por mês pela generosidade. Como pode o banco cobrar tanto?
Acabei de ler um livro sobre o bairro financeiro de nova iorque. Aquele porto do império colonial, Manatuouh, Manhatã, Manahachtanienk. Na rua do muro que os separava dos vermelhos, Wall. Onde ergueram, no número 14, uma pirâmide do mundo antigo em cima do arranha-céu de torre. Capital do capital. Mestres da papelada, fundaram a democracia há duzentos anos. E um novo mundo de criações financeiras. Será que um dia vou entender?
Tenho de estar eu mesmo na margem, no beiral da porta de saída, na fenda, abrindo a fenda: só aí, no umbral, forçando a fresta da porta, poderei ver e dizer e entender a alquimia viva destes papéis que se tornaram o nosso ouro. O que nos intermedia, o que está entre a população, as suas margens (somos rios de tempo), its banks. Sua história obscura, difícil de ser contada, em uma palavra, cega.
Vejo bem, nos relatos de cem, duzentos anos atrás, a proliferação de tantas notas com assinaturas as mais variadas. Mil bancos emitindo, e dando falência, ao lado de tantas falsas e roubadas. Patrão paga com cédulas de bancos perdidos, duvidosas, duplicatas, cheques e promessas de desconhecidos que os outros não aceitam em valor cheio. Inundação de papel, lubrificante, por vezes falso, só aumenta a orquestra da competição infernal. Promessas, contratos, ordens carimbadas em papel timbrado; escrituras, cartas com o selo do rei ou da repartição, ordens judiciais, disputando, competindo para afirmar seu poder concentrado e sendo ultrajadas, ignoradas; os canais sendo cavados, os feixes, alinhados; imbrincados, a competição de poderes e de suas manifestações, chamada indústria dos impressos de segurança, os não copiáveis. E não se fala sobre isso, uma história toda junta, papel-moeda e os selos de autoridade. A papelada.
Nunca entendemos as classes não produtoras, os gerentes, burocratas, capitalistas: a articulação, a trama que põe tantas partes em conexão, as dobradiças. Chamar capitalismo de democracia - mas e a empresa, a corporação, com sua assembleia dos diretores, e o pêso dos votos dos acionistas, já não está construída? Ficamos ofuscados pelo sufrágio universal, sem ver que o voto, esse papel contado, está por toda parte. Dinheiro que sai e que volta, sortimento de papéis contados que recebo (ou que herdo, ou arrisco criar) e que emprego, à escolha livre. História dos papéis contados, não copiáveis.
Não vejo dito, que no ouro, na prata, o metal raro permite é a medida, que se circule - imensa gincana, bazar e ciranda - um número, sempre igual, indo e voltando dos seus donos. Um nível - mais alto, mais baixo - numa escala do raro.
Tantas metáforas da água, tão perfeitas, sem nenhuma reflexão? Nível dágua, pois bem, e a liquidez, os bolsões, os fluxos, as cheias e as vazantes, a circulação, as injeções, a canalização... a sede, a pesca... os tubarões (agiotas, usurários).
E nosso parentesco com rios, drenando, irrigando. Vejam os países do alto, cortados por esses feixes, como que veios de árvores, as veias estradas, ruas, luzes, as bacias hidrográficas até os portos. Correnteza de anéis de metal, elos e correntes reunidas em feixes como um grande planeta de fantoches uns amarrados nas cordas dos outros, e sufocando em acusações de titereiros, sem ver as cordas, a cadeia de cordas... Cá embaixo são os fios dos fiados (do crédito acreditado) e da confiança, de que a aposta na ciranda vá dar certo. Imenso blefe no futuro, loteria, caça-níqueis - e este papel de mão em mão, com que se abrem, todas as portas, contagiando-as, maculando-as com seu desnível - não é outro disfarce, mais disseminado, do coringa dos jogos de baralho? Estranha e valiosa carta, que todos querem, que facilita, mas que tudo suja, degenera em cópia, simulacro da ordem que haveria sem ela ali, e que, para os que só têm coringas na mão, sufoca em ser só o nada, chafurdando na sua sujeira...
Mas me assusta, essas ideias - constatações - tão simples, primárias, passarem cegas, sem história, na guerra do dinheiro que brilha. A sede do ouro, de sua glória forjada, sua falsa luz que a tudo ofusca, é ela mesma cega, cegada, pelo seu próprio fulgor. Capitalismo: esta palavra mágica, que os ianques assumem com orgulho, sinônimo da sua liberdade. A trama suga e concentra na capital - na cabeça - no topo planejador, previsor, confiável, as rédeas para o concerto de membros ser levado ao limite de exaustão; alavanca de arquimedes movendo o mundo, cristalizando ferramentas, aço-muros e atalhos para a afluência - esta sempre sugada, recirculada, alavancada em grandes golfadas tecnológicas enquanto as pontas padecem, ressecadas, e o centro é um pântano do consumo do nada, dormência, simulacro do reinado da abundância. Pletora do coringa, o bobo da côrte, seu alquimista que proliferou o ouro na exata medida de inventar reis falsos, onipotentes mas ainda escravos do seu precioso mundo de preços.
O juro é a renda da terra, o excedente, a afluência (o número brotando) concedida ao coringa. Os medievais acusavam a moeda de ser porra, semente: nada cria tão-só ela mesma, que só com terra que o faz, a fertilidade, as mãos, mães da matéria.
-
Albatroz Zero 
Vinte Dois 
André Aranha

domingo, 27 de setembro de 2015

Guerreiro, 
é o nome do meu cavalo
Guerreiro
é o nome do meu cavalo
O Marquês de Albatroz fincou sua bandeira de galinha. Está fundada a Ninharia!
Estatuto Um: Seremos anarco monarquistas.
O Marquês de Albatroz se chicoteava, deliciosamente
Ele cavalgava, centauro,
a sutura de seu corpo de homem
com as patas do cavalo.
Guerra: O estatuto do chicoteamento define as formas de guerra.
A federação de anarquias, como forma maior, consultará os trabalhos dos membros informes.
Alta fronte do centauro, armada da lança e do escudo, centauro em guerra, imperando sobre as patas velozes. O equilíbrio da justiça com o envenenamento, o ferrão.
Dentre a flutuação do raio e do azar, brilhar como um sol negro no segundo centro da nossa rotação.
-
Albatroz André Aracnídeo

domingo, 13 de setembro de 2015

Ar
O sonho é uma realidade paralela... é o verso verdadeiro dos lugares. É onde descobrimos coisas, contato com deuses...
O prédio tem seu duplo no sonho, que se impõe a todos. O terraço do meu prédio, aquele chão sobre a nossa morada ao céu livre, nosso aulé - a origem da palavra aula, o terreno aberto ao céu - o aulé das nossas casas empilhadas. Esse aulé tem um duplo no sonho, ao qual voltamos em várias noites e que ressoa nas nossas raras idas àli.
Acordei e havia estado num lugar que já visitara noutras noites. Lugar poderoso, do elemento ar. E este sonho foi regido pelo elemento ar, que rege em mim toda uma cadeia de faces. Não querer ficar em lugar fechado. Amar o aberto. Ventiladores maravilhosos.
Podia voar, e o vôo é sempre difícil, às vezes subo, às vezes mal saio alguns palmos do chão ou só nado na atmosfera, preciso estar com uma confiança precisa no ar, na leveza. Estar regido pelo elemento.
Mas nesse sonho subi até o topo levando amigos subi reto, sem vento, só correntes de gravidade. Correnteza de gravidade. Pegar o elevador com meu amigo gui e dentro dele voar reto para cima, os andares passando aos milhares até de repente inclinar o percurso, e o cubículo do elevador se expandir em uma esfera. Levei o gui lá em cima, arrebentando os tetos até esse terraço imenso, o topo do prédio com vários níveis de terraço. Enormes construções de concreto que se erguem depois das nuvens em arquiteturas gigantescas, e voar ali no meio (voar é tão perigoso,é algo com a respiração, o frio do umbigo).
Acordei saudoso da realidade, da boa nova. Lembro já ter visitado essas arquiteturas sobre o prédio, imensas e desertas, cidade de deuses... enormes galpões da cobertura, vazios enormes gigantescos subindo até o topo do céu e a terra apequenando e ficando um globo lá embaixo e o céu de repente se dobra em abóbada ao nosso redor cheia de furos redondos, colcha furada do fim do universo onírico, e entrar num furo seria sair para outro real - no planeta do sonho universal não existe espaço sideral, é algo mais primevo, elementar, há o céu e fim.
Escolhemos descer dali do mais alto topo e vamos por um efeito de lentes saindo por dentro das cenas do topo da hierarquia dos poderosos / numa festa dos muito ricos o primeiro-ministro cheirando pó. De dentro do elevador esfera, tamos entediados lançando bolinhas de tênis dentro de trilhões de espelhos que caem na câmara presidencial ora toda esburacada por estes portais, nós zombando deles e a côrte dos dominadores em reunião de emergência, desarmada.
Descendo do topo do céu além-prédio, descobrir um palácio redondo de muitas portas, as sacadas dos andares voltadas para dentro para esse vão cilíndrico que elas contornam em espiral: mesmo palácio que os reis, luís XIV e tal, visitavam em seus sonhos há tanto tempo; ora esquecido, abandonado. As portas dão em galerias de bichos, de insetos, ou estão vazias, abertas... e em alguma delas estão guardados os antigos pactos antigos acessos simbólicos ao elementalismo do mundo (os deuses são a superfície dos elementos acionados em chaves com os livros do mundo).
E nesse lugar do sonho universal, o palácio das portas esquecido, os reis foram e fizeram pactos profundos que ora operam perdidos, alianças, anéis pulsando dentro de certos quartos no verso noturno do mundo. E num repente vejo aquele amigo taroísta apontando o Stromboli elétrico-demoníaco em que se colam caracóis, conchas, os fluxos de energia magnética (e vejo as dobras rosadas de sua pele de porco).
Falta forjar o anel profundo que está rompido, fundir um pacto muito profundo nas entranhas do solo do inconsciente universal e trazer à superfície da consciência o anel, a ligação evidente, a união entre noite e dia. Esta operação profunda, elemental na fusão da união que está rota, li no mago de terramar há 17 anos, sou eu.
Gosto bom de enfrentar o leviatã pelo símbolo: e o sonho não é real? se luto nele a grande batalha da primavera e volto purificado e certo nas energias, trago comigo efeitos reais da jornada onírica para o dia.
Poderosa visita à pirâmide incal branco onde vivo.
-
Albatroz colhe andré ar

domingo, 6 de setembro de 2015

Gallo-romanos
Sou Luís XIV adentrando os pórticos imensos e cobertos de estátuas de pobres segurando estátuas de santos e anjos segurando estátuas de cenas bíblicas, caminho sobre o tapete vermelho para minha coroação pelos bispos e cardeais e papas do divino feudal nestas galerias altíssimas. A catedral é oca e ressoa os passos, nossa voz é reduzida aos murmúrios e somos tão pequenos, apequenados nesta dimensão comprida, nessas câmaras acústicas de ar límpido e parado.
E quando vai dar as seis da tarde ouço um lamento, um canto piedoso que preenche o vazio inteiro daquela catedral de reis. E seguindo essa voz, encontro um punhado de fiéis ajoelhados ante a estátua da mulher com a criança, da jovem mãe, e é um senhor ajoelhado, uma pessoa comum, que canta com voz grave e ecoa por toda a construção. É música, acolhedora fé, e por um instante aquele lugar é humano e sagrado.
Todos que moram por perto respondem às nossas perguntas dizendo: essa catedral, não é a verdadeira, é uma reconstrução e a cidade é inteira falsa, foi morta e é apenas uma reprodução. O rancor vivo, mas essas pessoas, esses velhos repetem um trauma que não viram, todos nasceram após o cataclisma ancestral. Só conheceram a majestosa reprodução, nunca viram o fogo ou as bombas dos seus avós. Mas por toda parte, há túmulos, marcos, e o mapa diz simplesmente: monumentos aos mortos. Em cada vilarejo, comuna, pequena vila de casas camponesas - desses camponeses ricos que fazem vinho e queijo e champanhe finíssimo há dezenas de gerações, artesãos do luxo da côrte e da aristocracia - perto de cada igreja ou mesmo nas casas e praças há placas registrando algo que faz 70 anos: fuzilamentos e bombardeios e assassinatos e perseguições dos seus antepassados. Patriotas - fuzilados por estrangeiros - são os personagens tão repetidos destes marcos onipresentes, rodeados de rosas e bandeiras iguais.
Eu lia um livro mórbido, da estátua rocha imortal, da necrópole que jaz nas entranhas da metrópole: e um conto das catacumbas e ossuários dos pobres, removidos de cemitérios em grandes obras e empilhados em prateleiras e prateleiras nas galerias subterrâneas sob a Paris de monumentos; a cidade morta-viva, edifícios da memória petrificada, colunas e pedra e pedra e pedra lapidada pelos pobres sem nome e erigida em ídolos eternos. E seu fascínio pelo Egito, Napoleão saqueando faraós daquelas civilizações milenares dedicadas à construção de túmulos, povos inteiros escravizados no deserto ácido para erguer as maiores homenagens à morte que já se viu. E o conto do cemitério de criptas e mausoléus nalguma cidade egípcia que foi reinvadido por pobres e favelizado, os nomes dos mortos riscados e substituídos pelos vivos que agora ali moram, e a polícia adentrando a necrópole para correr sangue por cima das lápides esquecidas. Cidade morta-viva petrificada na sua realeza inumana.
E nas beiradas da cidade vemos surgirem edifícios mil mais altos que a catedral ou o arranha-céu dos bancos: monumentais contêineres, majestosos galpões em série, um atrás do outro iguais: caixas quadradas altíssimas sem nenhuma pista do que contêm; às vezes um cilindro imenso, uma torre cilíndrica ou cinco torres cilíndricas e um tubo colossal dando em mais galpões. Festa da geometria pura, da forma sem conteúdo, metálica, paredes finas e vazias, concreto até o céu ao lado de montes de areia derramada, dunas de brita, de grãos ou algo minúsculo a granel, matéria amorfa; ao lado de pilhas infinitas de grossos canos de concreto, de material de construção e o vazio, ninguém habitando, imensos castelos de formas vazias por toda uma periferia interminável.
Seguir e de repente cruzar com outro daqueles campings, parkings, não sei que nome dão, longo gramado coberto de trailers e trailers e trailers brancos todos brancos ou cinzas, trailers brancos e toldos cinzas e carros brancos e caminhonetes cinzas a perder de vista, cenário impressionante do quê? duma favela nômade? mas não são ciganos, são pequeno-burgueses sem grana para a terra cara para as construções aristocratas de pedra lapidada para os monumentos à arquitetura dos reis. É isso o camping deles, imenso estacionamento de carros e os carros ocupam a cidade inteira, tantos tantos carros bonitos novos de última geração por toda parte. E os prédios baixos e a população pouca e as ruas largas dos aristocratas e por isso os carros em enxame povoam cada quadrado aberto e são enxames de metal agressivo. A população de carros e carros e carros, e eu tenho sonhos dos carros guinchados copulando e procriando e tomando as ruas em um fluxo sem objetivo que não circular o aço polido e a fumaça. Por quê não têm os carros uns bancos de praça em seus capôs? e aí teríamos bancos por toda parte e a cidade seria alegre, e não um estacionamento gigante.
Mas todo meu rancor de colonizado foi só fumaça sem alvo, que é uma mentira que todos se contam, de que ainda há reis, a côrte linda do rei sol em seu gosto aristocrata pelas altas artes, essa fôrma sofisticada para mais consumo padrão, em série, indústrias padronizadas e carros e caixas da mesma neurose que atravessa todo o globo. Então de novo, aqui a guerra é a mesma: descobrir paz sem saber onde pisa, aceitar ser joguete da sorte, louvar a música e a saúde do corpo, ouvir.

-
Albatrros ãdrre arrãnh





(ou ...gigante. Só vi barracas de acampamento foi sob os viadutos, os sem-teto e sem-carro e sem-barco vivendo acampados sob a ponte.

Eu fiquei tão triste de descobrir que eles vivem sob ditadura, que o meu rancor colonizado não tinha tanto alvo, que é uma mentira que eles se contam, de que são reis, a côrte linda do rei sol aristocrata em seu gosto pelas altas artes. E se as colunas imperiais dão abrigo a mais uma agência de seguros e sob os arcos centenários há a moda americana e as butiques padronizadas iguais às da minha terra natal, nada exibiu tanto o contraste do que ver num restaurante metido uma tela passando jogo de futebol emoldurada por um arabesco de ouro ricamente trabalhado, a fôrma da aristocracia para mais consumo padrão, em série, nessa rede que atravessa todo o globo.)

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Na mesquita
Ao sair da mesquita, daremos a volta no quarteirão para voltar ao mesmo edifício, agora pelo lado profano do café. E eu desabarei na cadeirinha de ferro trabalhado, sem olhos ou pensamento. Um cansaço imenso me afligirá. Não ter o caminho. Porque lá dentro, a beleza fulgurante da verdade revelada. O uno. Neste mundo de sombras e correrias, horários organizados, plástico, papel de embrulho, ruídos e defeitos, soluços. Encontrar a paz silenciosa. Entrar na mesquita como num banho de silêncio. A alma em paz. Caminhar sobre ladrilhos finamente pintados em grandes mosaicos maravilhosos que sobem as paredes até culminar em abóbadas fantásticas. Roçar as roupas pelas colunas esculpidas nos detalhes mais sutis, e perder os olhos descobrindo a cada vez mais uma peça perfeita talhada na pedra com a precisão de mãos infinitamente mergulhadas neste gesto. O gesto de desenhar a palavra Allah de novo e de novo, em cada palmo visível da construção, em cada canto do espaço. Allah. A luz que desce do céu límpido sobre o deserto branco. As letras em traços fluidos na caligrafia das espadas e dos tecidos. Caligrafia de mil anos, para a qual nossa tipografia quadrada é brincadeira de crianças. Entrar na mesquita como um bárbaro bruto de uma civilização perdida em mentiras. Tirar os sapatos e adentrar o recinto das preces. Executar as muitas orações secretas. Partilhar do silêncio mútuo entre desconhecidos na louvação ao deus maior. Ao caminho puro, claro. O que eu não esperei é que fosse tão lindo. E o fardo depois me afogará ao tomar o chá de menta para os estrangeiros brutos. O peso imenso de não ter a verdade revelada, de seguir errando pela falta de rumo da civilização empoeirada, de carros bebidas e tanta violência. A mesquita convida, está viva, viva num convite que o catolicismo decadente nunca pôde me dar. Então sair de lá será um abismo, o olhar no abismo e a vertigem imensa. A contemplação da forma bela da unidade de deus puro em um desenho belíssimo. E o vento que nos arrasta sem cessar pelo mundo que se desmancha, que nos tropeça e esbarra e nos faz pender inclinados; este vento cessado. Ali finalmente erguido reto, o silêncio da alma e o ar imóvel. E a voz dele chamando para a prece do pôr-do-sol, o canto gemido dos árabes, quando me apoiei numa coluna e senti o coração fraco. O abismo de olhar a mesma palavra mil vezes repetida, o mesmo gesto mil vezes executado, com a perfeição absoluta, com a paz que tanto procuramos. A verdade revelada pelo deus uno. E quando antes eu passara em frente à sinagoga e vira soldados com fuzis prontos para reagir aos terroristas da Jihad que ali vêm se matar, eu lembrei que a guerra santa tem em si o conforto da única verdade. O abismo do colamento entre o divino e o revelado, o que já está, o que é. Não é uma verdade passada, posto que é aqui, é a contemplação da palavra bela. Allah. E após ver esta nudez da alma esvaziada ante o uno perfeito, vestir a alma guerreira da invenção dia após dia da divindade entre nós parecerá um fardo insuportável. No pátio das preces, bastará voltar ali, ajoelhar-me que a fé virá, e eu sentirei a comunhão muda com Allah, a verdade una, que ultrapassará todas estas palavras. Eu posso ser um deles, neste momento, eu posso estar em Allah. Um homem devoto. À verdade una, à divindade que simplesmente é, não se cria, que a criação é o uno, não o dois, o múltiplo. Que o mundo está feito, não por fazer. E o mundo das sombras é o erro. Eu vivo no erro. No plural borbulhante. E por isso tomo tanto cuidado com esse abismo de cessar as muitas faces da criação. Quero a luz criada que saiu de dentro de cada um. As verdades que despertaram de nosso seio e alimentaram o mundo. Não é uma recusa una. Não afirmo um Allah de muitas roupas que derrotará a palavra una do silêncio. Mas eu descobri o um a partir do dois, se havia luz e trevas, houve a certeza do caminhar dos cegos que transcendeu os pólos num caminho terceiro, que é o um reencontrado. A unidade a partir do caos, e não antes dele. O divino encontrado atravessando o dois. É esse o caminho do rio que atravessa a cidade profana e afina as almas entre si, soando a harmonia das suas orações. E visto daí, é muito claro que na mesquita única o dois dos sexos seja negado, profano, e deva ser coberto de véus. Todas as muçulmanas de cabelos contidos sob panos, de ombros, tornozelos, tapados. Sintoma da negação do dois. Da petrificação no uno. O divino, petrificado. E ao sair de lá, não quero erguer uma cidade de pedras. Há pedras demais, não é uma pedra maior que faz falta. Falta a verdade fluida do rio. Da unidade a partir do caos. A ordem cósmica que emergirá do caos profano, que será sua alma pelo caos afirmada. Caosmos. Gaia projetando o céu como seu espírito, e não o vazio transcendente vestindo roupas de carne impura. Mas senti falta dos cantos.
.
Al-atrai andré aranha 3

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Cuidado. Há quanto tempo você não checa a água da caixa dágua? Formas de vida podem estar se desenvolvendo ali, ali de onde vem a água que você bebe. Você quer usar um filtro. Não gosta de comprar água mineral, plástico insuportável. Autonomia hídrica! Beber da caixa dágua. Mas o que tem lá dentro? Não demora muito começa a aparecer bichinho. Você dá um mês, desatento, e aparece até peixinho. Sapo, sapa. Larvinha e alga é de praxe. Tô falando de coisas maiores. De onde vêm? Talvez da chuva, do ar, mas talvez não venha de lugar nenhum. De onde vem poeira, você já descobriu? Surge do nada. O ar se acumula num ponto e de repente fica mais cinza, seco. E se não tem ninguém por perto, mais umidade, um lugar escuro, protegido, dá em rato, pombo. Morcego, essas coisas. Na caixa dágua o fenômeno é muito mais intenso. Outro dia abri a caixa dágua e tinha uma criança dentro. Porra demorou pra me buscar! Pulou fora e saiu correndo. Muito inconveniente. Limpe sempre a caixa dágua. Não dá duas semanas pode surgir cobra, cachorro, cavalo. Melhor animal para ficar na caixa dágua? Caranguejo? Lagosta? Poucos sabem, mas é cavalo. Cresce rápido que deus me livre. Se for viajar, se liga. Um dia tem um potrinho, no outro um cavalão do tamanho do teu quarto, duas éguas, uma vaca, galinha, um fazendeiro preguiçoso. E você pensando em colocar flúor. Cloro. Não adianta. Tem que ficar olhando todo dia. Tem que pegar o mal pela raiz. Tá dormindo? Pode ter bebido rinoceronte. Girafa, avestruz. Tem de tudo, tá foda hoje. Melhor é colocar câmera na caixa dágua, fio elétrico, torradeira. Esse é o caminho. Ficar verificando, não marcar bobeira. Laptop, microondas, tudo quanto é eletrodoméstico. Radiação faz bem, cancela essas porcarias de natureza. Se tu vai trabalhar, nenhum lugar melhor do que ali dentro. Tomar banho, só que tem é o sabão de côco. E aí se alguém abre e tu tá todo ensaboado, dá um grito! desce pelo cano. Se não cabe, fazer regime, e canos mais largos. Toboágua doméstico. Caixa dágua não é pra qualquer um. Cuidados necessários. Fique atento.
-
Algas e aranhas atrás de andré

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O quarto
Adoro fazer bagunça no quarto. Sou praticamente um especialista. No momento em que escrevo, o chão do quarto está nu sem o colchão que me serve de cama, e a pequena varandinha se encontra atulhada de almofadas, duas cadeiras, um banquinho que achei na rua, cacarecos. "Atulhada" - eu acho que esse adjetivo cabe bem no meu quarto. Tenho uma tara por acumular coisas, bonequinhos, enfeites, pedaços de móveis, não sei definir. E livros, muitos livros. E papéis, pilhas de papéis. E cadernos. Sempre quero trazer as pessoas no meu quarto para ver sua reação, se está inóspito, ou se o caos está acolhedor. Vejo logo se espraiarem na cama, e o meu quarto tem essa permanente promiscuidade entre o largado no chão e o íntimo.
Duas leis de sanitarismo (sanidade). Roupas, ou junto ao armário ou, sujas, fora. E lixo na lixeira; comida nem fica aqui. O resto é sem regra mesmo.
Quando eu era pequeno eu tinha tantos tantos bonecos que chamava meu amigo Rafa e montávamos a Legolândia, com as casas, os laboratórios científicos, as selvas. Lembro de fazer censo na população de cento e tantos bonequinhos, e classificar as cabeças que mais gostava, os troncos, os chapéus/capacetes, antes de montar meu personagem-eu. Minha mãe tentava criar rotas pelo quarto, pequenas áreas que eu não ocupasse com as pecinhas para que ela pudesse passar. Mas sem sucesso. Ela também não podia criticar, pois no natal fazíamos presépios imensos por toda a sala, com montanhas de cartolina e lagos de espelho, que são até hoje minha referência. A cozinheira Elcy que me criou diz que desde então não mudei nadinha, chamando amigos para montar cenários pela sala.
De lá pra cá, só começo a lembrar das bagunças uns cinco anos atrás. Cobrir uma parede de cartolinas e fazer pinturas, e dormir com o cheiro da tinta. Tem manchas no rodapé até hoje, mas eu não aguentei o cheiro. Aí encasquetei com fazer o ventilador gerar desenhos ao deixar uma caneta pendurada sob o seu vento, por horas. Isso durou alguns meses, eu entrava de noite e dois ventiladores zumbiam com o vento riscando os papéis e eu ia afobado ver os resultados. O resto do quarto não importava, eram amontoados e som do risca-risca a noite inteira.
Vem daí um prenúncio próximo do meu carinho tanto por certas maquininhas bem mecânicas quanto pelo imprevisível vento e seus sussurros. A janela foi reformada para virar um janelão aberto, e na pequena varandinha, um futom para dormir. E dormir lá fora, voltado para o nascer do sol, minha pequena praia de todas as manhãs. Fui ficando bronzeado só de dormir, e acordar do calor às 8 para ligar o ventilador e me sentir na praia dormindo nu, no sol. Os vizinhos, lá embaixo (moro no 11° andar, em frente a várias vilas), se olhassem para cima veriam um distante atentado ao pudor. Daí no verão o vento fluindo e as muitas duchas frias na minha pequena guerra à cultura do ar condicionado apartado do clima e do mundo.
Dormindo nessa varanda com a porta fechada, com o céu atrás duma rede pra proteger nossa gatinha Amélia, ao lado duma gaiola de passarinho linda que achei um dia e guardei, mais um edredom que solta penas de ganso, e uns barbantes que estiquei pelo teto, onde prendi uma roldana com um gavião de brinquedo que podia nela correr - a ideia do pássaro engaiolado (Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho...) de asas dobradas, sem espaço, marca bem que ainda moro na casa dos pais.
Em vez de sair, fui adensando minha ocupação. Do lado de dentro, o quarto virou metade uma oficina, uma estante inteira de papéis e materiais para montar dozenas de projetos de textos e revistas, uma coleção de revistas nossas e alheias (livros livros livros) ferramentas, uma impressora espaçosa... Essa oficina que deve ganhar autonomia, que foi encubada aqui por 2 anos e que agora vai ganhar uma filha maior, e comum a todos. Talvez ela saindo, eu possa sair também. Minha impressorinha... o ôlho do ninho, a boca de abundância que jorra do meu quarto, eu me acostumei a dormir ao lado desse seu formigueiro.
Deixei de me recriminar, e assumi minha bagunça, em tantas e tantas tardes e noites que embirutei de mudar toda a ordem de tudo. Uma vez cheguei a pôr a mesa na diagonal, e a cama por debaixo dela, a cadeira pisando em cima. A regra é experimentar. E impedir que surjam, o que meu pai chama de pandemônios: núcleos duros de bagunça intratável, amontoados ou gavetas entulhadas de tanta coisa inclassificável que se torna apenas ruído, ruído sólido tomando o espaço com sua presença. É o espaço morto, negativado e contagioso. Como positivar o ambiente inteiro, articulado, desenvolto?
Daí a me apaixonar num texto antigo, "O Econômico" que é um tratado antigo sobre a arrumação (nomia) da casa (óikos) ou do navio. Saber o quanto cada coisa se faz usada para saber sedimentá-las sem que se embolem em menos de uma semana. As roupas e o lixo são o fluxo mais simples. Mas e o corpo, o habitante do quarto? E os copos d'água que surgem sem razão, os papéis anotados, as meias largadas que encontro, sem explicação? É esse o maior desafio da bagunça do quarto.
-
andré aranha alba 3
CurtirMostrar mais reações
Comentar
2 comentários
Comentários
Sandra Soares De Freitas
Sandra Soares De Freitas Será que tudo que imaginei é real?
Curtir · Responder · Enviar mensagem · 2 · 6 de agosto de 2015 às 16:54
Jonatan Agra
Jonatan Agra cara, que magnético isso tudo, essas palavras, minha identificação com elas, a imagem do quarto como um espelho de si. só que um espelho que refletisse não o que se é, mas o que se foi. nossos rastros. como um reflexo dos nossos gestos, com ou sem motivos, com ou sem utilidades práticas. o quarto como um reflexo em matéria dessa delícia incoerente e bisonha que é existir. copos d'água, pontas, sachês de chá, bilhetes, tesourinha de unha.