quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O quarto
Adoro fazer bagunça no quarto. Sou praticamente um especialista. No momento em que escrevo, o chão do quarto está nu sem o colchão que me serve de cama, e a pequena varandinha se encontra atulhada de almofadas, duas cadeiras, um banquinho que achei na rua, cacarecos. "Atulhada" - eu acho que esse adjetivo cabe bem no meu quarto. Tenho uma tara por acumular coisas, bonequinhos, enfeites, pedaços de móveis, não sei definir. E livros, muitos livros. E papéis, pilhas de papéis. E cadernos. Sempre quero trazer as pessoas no meu quarto para ver sua reação, se está inóspito, ou se o caos está acolhedor. Vejo logo se espraiarem na cama, e o meu quarto tem essa permanente promiscuidade entre o largado no chão e o íntimo.
Duas leis de sanitarismo (sanidade). Roupas, ou junto ao armário ou, sujas, fora. E lixo na lixeira; comida nem fica aqui. O resto é sem regra mesmo.
Quando eu era pequeno eu tinha tantos tantos bonecos que chamava meu amigo Rafa e montávamos a Legolândia, com as casas, os laboratórios científicos, as selvas. Lembro de fazer censo na população de cento e tantos bonequinhos, e classificar as cabeças que mais gostava, os troncos, os chapéus/capacetes, antes de montar meu personagem-eu. Minha mãe tentava criar rotas pelo quarto, pequenas áreas que eu não ocupasse com as pecinhas para que ela pudesse passar. Mas sem sucesso. Ela também não podia criticar, pois no natal fazíamos presépios imensos por toda a sala, com montanhas de cartolina e lagos de espelho, que são até hoje minha referência. A cozinheira Elcy que me criou diz que desde então não mudei nadinha, chamando amigos para montar cenários pela sala.
De lá pra cá, só começo a lembrar das bagunças uns cinco anos atrás. Cobrir uma parede de cartolinas e fazer pinturas, e dormir com o cheiro da tinta. Tem manchas no rodapé até hoje, mas eu não aguentei o cheiro. Aí encasquetei com fazer o ventilador gerar desenhos ao deixar uma caneta pendurada sob o seu vento, por horas. Isso durou alguns meses, eu entrava de noite e dois ventiladores zumbiam com o vento riscando os papéis e eu ia afobado ver os resultados. O resto do quarto não importava, eram amontoados e som do risca-risca a noite inteira.
Vem daí um prenúncio próximo do meu carinho tanto por certas maquininhas bem mecânicas quanto pelo imprevisível vento e seus sussurros. A janela foi reformada para virar um janelão aberto, e na pequena varandinha, um futom para dormir. E dormir lá fora, voltado para o nascer do sol, minha pequena praia de todas as manhãs. Fui ficando bronzeado só de dormir, e acordar do calor às 8 para ligar o ventilador e me sentir na praia dormindo nu, no sol. Os vizinhos, lá embaixo (moro no 11° andar, em frente a várias vilas), se olhassem para cima veriam um distante atentado ao pudor. Daí no verão o vento fluindo e as muitas duchas frias na minha pequena guerra à cultura do ar condicionado apartado do clima e do mundo.
Dormindo nessa varanda com a porta fechada, com o céu atrás duma rede pra proteger nossa gatinha Amélia, ao lado duma gaiola de passarinho linda que achei um dia e guardei, mais um edredom que solta penas de ganso, e uns barbantes que estiquei pelo teto, onde prendi uma roldana com um gavião de brinquedo que podia nela correr - a ideia do pássaro engaiolado (Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho...) de asas dobradas, sem espaço, marca bem que ainda moro na casa dos pais.
Em vez de sair, fui adensando minha ocupação. Do lado de dentro, o quarto virou metade uma oficina, uma estante inteira de papéis e materiais para montar dozenas de projetos de textos e revistas, uma coleção de revistas nossas e alheias (livros livros livros) ferramentas, uma impressora espaçosa... Essa oficina que deve ganhar autonomia, que foi encubada aqui por 2 anos e que agora vai ganhar uma filha maior, e comum a todos. Talvez ela saindo, eu possa sair também. Minha impressorinha... o ôlho do ninho, a boca de abundância que jorra do meu quarto, eu me acostumei a dormir ao lado desse seu formigueiro.
Deixei de me recriminar, e assumi minha bagunça, em tantas e tantas tardes e noites que embirutei de mudar toda a ordem de tudo. Uma vez cheguei a pôr a mesa na diagonal, e a cama por debaixo dela, a cadeira pisando em cima. A regra é experimentar. E impedir que surjam, o que meu pai chama de pandemônios: núcleos duros de bagunça intratável, amontoados ou gavetas entulhadas de tanta coisa inclassificável que se torna apenas ruído, ruído sólido tomando o espaço com sua presença. É o espaço morto, negativado e contagioso. Como positivar o ambiente inteiro, articulado, desenvolto?
Daí a me apaixonar num texto antigo, "O Econômico" que é um tratado antigo sobre a arrumação (nomia) da casa (óikos) ou do navio. Saber o quanto cada coisa se faz usada para saber sedimentá-las sem que se embolem em menos de uma semana. As roupas e o lixo são o fluxo mais simples. Mas e o corpo, o habitante do quarto? E os copos d'água que surgem sem razão, os papéis anotados, as meias largadas que encontro, sem explicação? É esse o maior desafio da bagunça do quarto.
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andré aranha alba 3
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2 comentários
Comentários
Sandra Soares De Freitas
Sandra Soares De Freitas Será que tudo que imaginei é real?
Curtir · Responder · Enviar mensagem · 2 · 6 de agosto de 2015 às 16:54
Jonatan Agra
Jonatan Agra cara, que magnético isso tudo, essas palavras, minha identificação com elas, a imagem do quarto como um espelho de si. só que um espelho que refletisse não o que se é, mas o que se foi. nossos rastros. como um reflexo dos nossos gestos, com ou sem motivos, com ou sem utilidades práticas. o quarto como um reflexo em matéria dessa delícia incoerente e bisonha que é existir. copos d'água, pontas, sachês de chá, bilhetes, tesourinha de unha.

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