Compreendendo o nexo fiscal monetário do financiamento do gasto público, da formação da taxa de juros exógena pela acomodação da demanda monetária, e da emissão monetária, a questão da função macroeconômica da arrecadação tributária parece perder importância. Neste sentido, torna-se comum que os versados em finanças funcionais (no sentido amplo) desqualifiquem os argumentos que associam expansão do gasto público a reforma tributária. Desqualifica-se como incoerente com as premissas de demanda efetiva e moeda endógena, reafirmando repetidamente que o Estado pode se financiar até o infinito. Os mecanismos tradicionais, na teoria ortodoxa, de limitação da expansão fiscal - a inflação, o câmbio, o juro - são estudados em análises setoriais, em episódios históricos ou contextos institucionais dados, sustentando a prática corrente de refutação a priori. O financiamento é ilimitado, sem nexos com inflação, câmbio, juro; o gasto público expande a demanda, infinitamente.
segunda-feira, 10 de maio de 2021
A reforma tributária é o centro do debate
Esta postura define uma interpretação das finanças funcionais bastante restrita, boa para a defesa da expansão fiscal mas sem nenhum apelo em relação à reforma tributária, vista como uma questão secundária, separada; frequentemente tratada como um objetivo de justiça social, ainda que se reconheça tacitamente que há muito mais em jogo. Porque há muito mais em jogo.
Se uma reforma tributária progressiva parece um ideal, na medida em que cala os embates sobre déficit público e impulso fiscal na direção de maiores graus de liberdade, ao mesmo tempo ela enfrenta uma oposição cerrada praticamente invencível. A repartição distributiva do ônus tributário é uma pactuação entre as classes; que ganha flexibilidade pela expansão do endividamento público, acomodador do conflito distributivo. No entanto, dizer que esse endividamento poderia elidir a questão da repartição do ônus - elidir a questão da repartição - indefinidamente, é uma afirmação bastante ousada. O nexo fiscal monetário se dá em um contexto institucional do sistema financeiro, com uma história e sempre em transformação. Da mesma forma, os instrumentos de política econômica são concretos, passam por coalizões de força reais; a economia não existe abstratamente mas sempre é social, institucional, histórica.
Neste momento a postura de finanças funcionais é de frisar a separação teoria e prática, teoria pura e sua inserção nos condicionantes sociais da realidade. É com base nisto, nesta separação analítica, que se diz, afinal, que a dívida é infinitamente sustentável. De forma que é com base neste modelo puro do sistema financeiro abstraído da sociedade que se desqualifica, definitivamente e a longo prazo, a associação entre gasto e tributo.
Argumento que tal posição não representa uma decorrência "necessária" da compreensão do nexo fiscal monetário e do Princípio da Demanda Efetiva. Não é de modo algum incoerente, e talvez seja bem mais realista, defender a insustentabilidade de uma expansão fiscal indefinidamente despreocupada com a tributação.
Se bem que o gasto não precise ser precedido por tributos, se bem que o Estado de moeda soberana não tenha restrições de financiamento, a "soberania" em questão não é uma categoria abstrata, inatingível a priori pelas consequências da expansão do endividamento público, dos déficits recorrentes, do aumento do serviço da dívida e tantas outras modalidades que o descaso com a tributação pode assumir.
De fato, a questão tributária tem sido tratada com descaso pelas finanças funcionais, e pelo debate heterodoxo. Não há grandes contribuições teóricas; pouco se fala de redução de tributos sobre a folha de salários; o ICMS é regressivo e objeto de extensa competição fiscal predatória... Ao mesmo tempo, é o sistema tributário quem fornece uma base - um pacto social sobre distribuição - para a sustentabilidade do gasto público a longo prazo.
Ao contrário do que a postura corrente advoga, poderíamos defender a postura inversa - sem que se possa nos descartar como incongruentes com o PDE e a moeda endógena - de que a questão tributária é o fundamento do debate; que a questão da expansão dos gastos trata do embate de curto prazo; que a batalha discursiva profunda é a reforma tributária, centro do edifício teórico das finanças funcionais realistas.
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