Que delícia experimento lendo o escrito de outrem.
Nesse repente me vejo íntimo, infiltrado na nudez do outro, entre a roupa e sua pele, só, descobrindo a solidão desse amigo. Me faz menos sozinho: espiar assim o ato sincero, de ver alguém se batendo individualmente, indivisivelmente, visivelmente digladiando o invisível e seus fantasmas.
O embate da letra é tão duro: é tão deserto. A folha branca é uma sala vazia, um silêncio - como rompê-lo? E já rompido, que estranhos castelos se erguem: a palavra usada é a palavra ouvida, construímos com o que temos. Minha voz é uma massa de ecos de tantos eus que nem conheço; a língua são peças brutas com formas várias, que enfileiramos e arrematamos as arestas. De repente, a catedral erguida desponta estranha, alheia, verbosa repetitida chata. Nela não quero morar.
Derruba-se o trilho, desfaz-se a página, e entre tantas vigas empilhadas, reaproveitadas, revela-se uma pequena fresta em que me encontro. Construto de aço, duro: em cada texto é imensa a repetição, o óbvio, a insubmissão da língua à intenção do autor. E inda assim, nas dobradiças, no rangido das engrenagens dos verbos, no soluço, no tropeço da língua - essa locomotiva - vejo um lenço vermelho, abanando.
Irrompe, naquele detalhe, naquele erro, toda a nudez do meu autor: que delícia, que delícia experimento, lendo as memórias dos amigos, como decalques de seu corpo: como peles de uma cobra que cresceu demais e as desvestiu, como um cacho de cabelo guardado, uma foto uma carta lembrança, como um espelho em que meus olhos se perdem no abismo de olhar-se vendo-se ver a sua vista, como o ato de dar vida a um boneco e animá-lo de sentido e som: foi rompido o silêncio, a sala não está vazia e visto roupas de muitas cores na aurora plena, no céu povoado de pássaros que agora habitam minha solidão.
Magia negra da tinta sobre a página, isto foi escrito pelo meu amigo, pela lista de nomes que desfio preenchendo meus dias - nesse navio de loucos, nesse amanhã que virá. A locomotiva tosse, o corpo aparece, um toque, sinto sua pele quente e os pêlos; é como eletricidade estática me arrepiando. Três vivas ao texto trismegisto. e mãos à obra.
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