sábado, 26 de dezembro de 2020

DE VOLTA A ALBATROZ

Que delícia experimento lendo o escrito de outrem.

Nesse repente me vejo íntimo, infiltrado na nudez do outro, entre a roupa e sua pele, só, descobrindo a solidão desse amigo. Me faz menos sozinho: espiar assim o ato sincero, de ver alguém se batendo individualmente, indivisivelmente, visivelmente digladiando o invisível e seus fantasmas.
O embate da letra é tão duro: é tão deserto. A folha branca é uma sala vazia, um silêncio - como rompê-lo? E já rompido, que estranhos castelos se erguem: a palavra usada é a palavra ouvida, construímos com o que temos. Minha voz é uma massa de ecos de tantos eus que nem conheço; a língua são peças brutas com formas várias, que enfileiramos e arrematamos as arestas. De repente, a catedral erguida desponta estranha, alheia, verbosa repetitida chata. Nela não quero morar.
Derruba-se o trilho, desfaz-se a página, e entre tantas vigas empilhadas, reaproveitadas, revela-se uma pequena fresta em que me encontro. Construto de aço, duro: em cada texto é imensa a repetição, o óbvio, a insubmissão da língua à intenção do autor. E inda assim, nas dobradiças, no rangido das engrenagens dos verbos, no soluço, no tropeço da língua - essa locomotiva - vejo um lenço vermelho, abanando.
Irrompe, naquele detalhe, naquele erro, toda a nudez do meu autor: que delícia, que delícia experimento, lendo as memórias dos amigos, como decalques de seu corpo: como peles de uma cobra que cresceu demais e as desvestiu, como um cacho de cabelo guardado, uma foto uma carta lembrança, como um espelho em que meus olhos se perdem no abismo de olhar-se vendo-se ver a sua vista, como o ato de dar vida a um boneco e animá-lo de sentido e som: foi rompido o silêncio, a sala não está vazia e visto roupas de muitas cores na aurora plena, no céu povoado de pássaros que agora habitam minha solidão.
Magia negra da tinta sobre a página, isto foi escrito pelo meu amigo, pela lista de nomes que desfio preenchendo meus dias - nesse navio de loucos, nesse amanhã que virá. A locomotiva tosse, o corpo aparece, um toque, sinto sua pele quente e os pêlos; é como eletricidade estática me arrepiando. Três vivas ao texto trismegisto. e mãos à obra.
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Albatroz Aranha

1a versão:

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

PLACEBO

Nesse século que entra, nessa quarentena que se afirma, nessa nova era que se abre - e eu digo, e reafirmo, que o covid é o marco dos novos tempos, o empurrãozinho para tornar onipresentes, desde já, as questões que vamos passar o século, o milênio enfrentando - e esse XXI é o século da ansiedade; é o século da doença mental.

A crise de saúde pública é uma crise de saúde mental pública - isso já sabíamos, já foi apontado. Pois a medicina chega ao limite, em sua alopatia desenfreada, sua narcotização de saídas fáceis, sua drogadição legitimada. Tecnicalizada, sob funcionários burocratas, psiquiatras e toda a pirâmide da alopatia desenraizada "a cabeça quer ir viver sem o corpo" perdendo o caminho da cura, que é o todo. Pois a doença da mente é a doença do corpo (o que está no alto é como o que está embaixo).
Nessa quarentena para mim, foi um aprendizado doído, e ainda é: mas estou mais ciente, caíram as máscaras do novo século (espero). Já tive doenças digestivas, dentárias, o meu peito se apertou de dificuldade de respirar, e crises de frio, e travar a lombar e inchar articulações: e tudo se apresenta como um santo baixando numa geografia anatômica: um demônio baixando, a doença: e que pode virar um curto-circuito, ciclo vicioso se realimentando de ansiedades. Mas eu descobri, a raiz é na alma.
Minha alma minúscula, minha alma onipresente, o debate é sobre reencontrar a calma, a única que não está presente no novo milênio. De primeiro, amar o sol e brilhar a saúde é saber o mundo bom e abraçar a si, ser. Está bem.
E de segundo: não há, de antemão, a doença; ela é um embate uma construção, que pode ir para qualquer lado e pode ser encurralada ou se espalhar: o ato de conhecer é o ato de co-nascer sujeito objeto, é o ato de fazer o fato se precipitar de sua nebulosidade vaga do não-sabido. E esta transmutação, esse afloramento do invisível, tem mil rostos possíveis que pode tomar. Há mil fatos possíveis, só um será verdadeiro, depende do caminho a trilhar.
Jamais fomos modernos, jamais desencantamos o mundo; encantamo-lo com essas máquinas difíceis, com que não sabemos lidar, e essas máquinas de pessoas - o conhecimento burocratizado, a educação da letra morta, a repetição de conteúdos desalmados - que não vemos, andamos tão cegos. Andamos tão tanto impossível de gigante de auto-cegos, ignorando a proliferação de espíritos poderosos. Ainda no conto moderno da navalha ontológica que separa o científico do pagão. Objeto e sujeito se reencontram no ato de nascimento, o ato de movimento, o afloramento do invisível sem destino pré-determinado. Ah,
Albatroz Aranha, novamente crendo no construtivismo científico (latour) como a única epistemologia capaz de salvar a razão do seu dogmatismo autodestrutivo e reenraizar a cabeça, no corpo