Clément me leva de miniônibus pra conhecer um bairro planejado. Segunda de manhã, alarme cedo no apartamento de um quarto só.
Quer tomar limonada?
Aceito! Assim só tomo café no trabalho.
Quer tomar limonada?
Aceito! Assim só tomo café no trabalho.
Dei pra ele um bolinho que resgatamos da Recup. O supermercado deita fora, em grandes lixeiras, um monte de produto passado da validade ou que são legumes feios, impossíveis de vender, mas bons pra comer. Algumas pessoas pegam. Em cidade pequena é fácil pegar e eu peguei. Comemos.
Andamos no frio. Ele aperta o código do portão pra entrar numa vila, mas logo saímos pra outra rua. "Olhei alguém pôr o código, é um bom atalho. A zeladora quando me vê reclama..."
Miniônibus nas auto-estradas, ele normalmente pega a bicicleta pública até a base do trem. Mas não é trem, é uma sigla: RER, o super metrô-bonde de uma cidade enormíssima. Sempre cheio de assentos vazios (no contra-fluxo, é claro, quero ver no rush) de um conforto elegante, mas que não me deixa deitar.
Vamos do outro lado da auto-estrada, já fora do anel periférico de rodovias (as muralhas antigas) que separa a capital de seu transbordamento sobre as cidadezinhas. Todas têm prefeitura comunista, forçando aluguéis baratos. "Cinturão vermelho"
- Como assim comunista?
Ah você sabe... Lenin, Marx...
Os que comem criancinhas?
- Como assim comunista?
Ah você sabe... Lenin, Marx...
Os que comem criancinhas?
Chegamos no trabalho dele. Edifício modernoso, de dois andares, espaçoso e com acessos por vários lados. E todas as portas estão trancadas, e a cada sala que me mostra, tranca a anterior. Não entendo por quê.
Salão da cafeteria, já com cheiro de café mesmo vazio; cozinha com panelões para comida em massa; salas de atividade, de aulas da língua nacional; de aulas de dança, de pintura e teatro; escritórios dos funcionários, espaçosos, corredores amplos; salas disponíveis para "quem quiser usar", ou para reuniões de grupos, ou para entrevistas individuais, de apoio jurídico aos imigrantes... sala de informática bagunçada, estúdio para música com vários tambores bons...
Café tomado, saímos ao bairro planejado. Grigny, gri-nhí, em meio a gramados verdes, edifícios longos, sinuosos de cinco andares fazendo curvas por uma área enorme, pontilhados inteiros por janelinhas. Vários assim, numa área enorme, delimitada pelas auto-estradas. Entremeados de gramados, de praças Júlio Verne, um grande mosaico com o rosto de Arthur Rimbaud, alguns brinquedos... Mas tudo muito rígido, impessoal...
As crianças estão saindo para a escola, com as mães (segunda-feira de inverno, manhã fria e chuvosa) e são todas negras ou árabes indianas asiáticas, nada da pele e feições do Rimbaud enorme que lhes faz paisagem. Não vejo pixações, nem nas passagens subterrâneas por sob a auto-estrada, nada de grafittis, nada de spray ou jet, ainda que a pouca cultura periférica que ouço daqui, seja muito rep e ip-op. Só algumas palavras riscadas nalgumas portas, do tipo que vejo muito em monumentos e ruínas antigas: arranhões.
Não posso deixar de comparar com a Cidade de Deus, favela do rio que conheci um pouco mais de perto. Ainda que de início um bairro planejado, da mesma época que esse aqui, anos 60-70, nessas décadas desde então não faltaram obras, alterações nos muros originais; casas fundidas, extensões, quartos novos, quartos divididos; novas portas para a rua para abrir pequenas vendinhas, lojinhas, para vender a roupa que costuram, a comida que fazem; para salão de beleza ou oficina, ou revenda ou conserto de qualquer coisa. Aqui não. Não tem comércio visível, só numa certa praça, muito regrada, um açougue, uma pizzaria, um kebab...
- Por quê não vendem coisas? Não fazem roupa, não cozinham? Não dão seu jeitinho?
- Não podem. A fiscalização, é muito forte. Tá vendo esse carro, estacionado? No pneu dele, tem uma marca de giz, passando da roda para o chão. Mostra que ele não andou desde que fizeram a marca. Foi a polícia quem marcou, a polícia municipal, a fiscalização. Se ele ficar parado mais 15 dias, é rebocado. Eles são muito presentes, estão de olho em tudo.
- Não podem. A fiscalização, é muito forte. Tá vendo esse carro, estacionado? No pneu dele, tem uma marca de giz, passando da roda para o chão. Mostra que ele não andou desde que fizeram a marca. Foi a polícia quem marcou, a polícia municipal, a fiscalização. Se ele ficar parado mais 15 dias, é rebocado. Eles são muito presentes, estão de olho em tudo.
Então não pode criar nada informal. Nada da informalidade carioca. E a periferia é toda assim. Planificaram e formalizaram todos os bairros informais, autoconstruídos. Não, pobre aqui mora em prédio planejado, planejado pra formar bairro dormitório. Então todos ficam muito encerrados dentro de casa, porque aqui não tem nada, tudo acontece fora daqui.
- Não tem favela? Barraco informal?
- Sempre volta a ter, até planificarem de novo. Agora está tendo muito os "rômes"... que pode significar ciganos ou romenos, ou ser só um nome genérico para nômades marginalizados. Tem uma parte grande da população que se chama, simplesmente, "le gens du voyage", gente da viagem; e que moram em enormes acampamentos de caminhonetes, carroças, trailers, e não têm muita identificação, se escapando um pouco de todo esse Estado controlador. Mas sofrem muita perseguição.
- Sempre volta a ter, até planificarem de novo. Agora está tendo muito os "rômes"... que pode significar ciganos ou romenos, ou ser só um nome genérico para nômades marginalizados. Tem uma parte grande da população que se chama, simplesmente, "le gens du voyage", gente da viagem; e que moram em enormes acampamentos de caminhonetes, carroças, trailers, e não têm muita identificação, se escapando um pouco de todo esse Estado controlador. Mas sofrem muita perseguição.
Mas a vida não é ruim, aqui. Só é muito fechada, sem identidade própria. Se tudo precisa passar pelo Estado, pela burocracia oficial, eles acabam se acostumando a esperar a ajuda de cima, em vez de pensar uma solução própria. E quando alguém melhora de vida, vai embora, morar noutro lugar, ainda que isso não aconteça muito. Veem aqui como lugar de passagem, em que moram por anos, décadas, encerrados.
De novo lembrando a favela do rio, cheia de rotatividade, de tráfico-milícia-políciacorrupta se imiscuindo nos pequenos poderes, e cheia de associação local, movimento de base, de mães se encontrando para arranjar solução, muito através de igreja, de reunião na paróquia como desculpa pra defender uma vida melhor. Aqui não sei de igreja, ou mesquita ou...
Não tem muita rotatividade, mas quando alguém melhora de vida, sai.
Concentrar os mais pobres num lugar só. Concentrar os problemas. E sua rede nos outros bairros?
Concentrar os mais pobres num lugar só. Concentrar os problemas. E sua rede nos outros bairros?
cigarros contrabandeados
Como saber a história dessas crianças? Nasceram aqui. São ilegais?
o dilema dele.... posso fazer... mas foi planejado pra nao.
Eu estou em contradição. Aceitei ser diretor mas acredito na autogestão. É preciso criar diagramas, é preciso muita planificação.
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Albatroz André Aranha
Albatroz André Aranha
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