Gallo-romanos
Sou Luís XIV adentrando os pórticos imensos e cobertos de estátuas de pobres segurando estátuas de santos e anjos segurando estátuas de cenas bíblicas, caminho sobre o tapete vermelho para minha coroação pelos bispos e cardeais e papas do divino feudal nestas galerias altíssimas. A catedral é oca e ressoa os passos, nossa voz é reduzida aos murmúrios e somos tão pequenos, apequenados nesta dimensão comprida, nessas câmaras acústicas de ar límpido e parado.
E quando vai dar as seis da tarde ouço um lamento, um canto piedoso que preenche o vazio inteiro daquela catedral de reis. E seguindo essa voz, encontro um punhado de fiéis ajoelhados ante a estátua da mulher com a criança, da jovem mãe, e é um senhor ajoelhado, uma pessoa comum, que canta com voz grave e ecoa por toda a construção. É música, acolhedora fé, e por um instante aquele lugar é humano e sagrado.
Todos que moram por perto respondem às nossas perguntas dizendo: essa catedral, não é a verdadeira, é uma reconstrução e a cidade é inteira falsa, foi morta e é apenas uma reprodução. O rancor vivo, mas essas pessoas, esses velhos repetem um trauma que não viram, todos nasceram após o cataclisma ancestral. Só conheceram a majestosa reprodução, nunca viram o fogo ou as bombas dos seus avós. Mas por toda parte, há túmulos, marcos, e o mapa diz simplesmente: monumentos aos mortos. Em cada vilarejo, comuna, pequena vila de casas camponesas - desses camponeses ricos que fazem vinho e queijo e champanhe finíssimo há dezenas de gerações, artesãos do luxo da côrte e da aristocracia - perto de cada igreja ou mesmo nas casas e praças há placas registrando algo que faz 70 anos: fuzilamentos e bombardeios e assassinatos e perseguições dos seus antepassados. Patriotas - fuzilados por estrangeiros - são os personagens tão repetidos destes marcos onipresentes, rodeados de rosas e bandeiras iguais.
Eu lia um livro mórbido, da estátua rocha imortal, da necrópole que jaz nas entranhas da metrópole: e um conto das catacumbas e ossuários dos pobres, removidos de cemitérios em grandes obras e empilhados em prateleiras e prateleiras nas galerias subterrâneas sob a Paris de monumentos; a cidade morta-viva, edifícios da memória petrificada, colunas e pedra e pedra e pedra lapidada pelos pobres sem nome e erigida em ídolos eternos. E seu fascínio pelo Egito, Napoleão saqueando faraós daquelas civilizações milenares dedicadas à construção de túmulos, povos inteiros escravizados no deserto ácido para erguer as maiores homenagens à morte que já se viu. E o conto do cemitério de criptas e mausoléus nalguma cidade egípcia que foi reinvadido por pobres e favelizado, os nomes dos mortos riscados e substituídos pelos vivos que agora ali moram, e a polícia adentrando a necrópole para correr sangue por cima das lápides esquecidas. Cidade morta-viva petrificada na sua realeza inumana.
E nas beiradas da cidade vemos surgirem edifícios mil mais altos que a catedral ou o arranha-céu dos bancos: monumentais contêineres, majestosos galpões em série, um atrás do outro iguais: caixas quadradas altíssimas sem nenhuma pista do que contêm; às vezes um cilindro imenso, uma torre cilíndrica ou cinco torres cilíndricas e um tubo colossal dando em mais galpões. Festa da geometria pura, da forma sem conteúdo, metálica, paredes finas e vazias, concreto até o céu ao lado de montes de areia derramada, dunas de brita, de grãos ou algo minúsculo a granel, matéria amorfa; ao lado de pilhas infinitas de grossos canos de concreto, de material de construção e o vazio, ninguém habitando, imensos castelos de formas vazias por toda uma periferia interminável.
Seguir e de repente cruzar com outro daqueles campings, parkings, não sei que nome dão, longo gramado coberto de trailers e trailers e trailers brancos todos brancos ou cinzas, trailers brancos e toldos cinzas e carros brancos e caminhonetes cinzas a perder de vista, cenário impressionante do quê? duma favela nômade? mas não são ciganos, são pequeno-burgueses sem grana para a terra cara para as construções aristocratas de pedra lapidada para os monumentos à arquitetura dos reis. É isso o camping deles, imenso estacionamento de carros e os carros ocupam a cidade inteira, tantos tantos carros bonitos novos de última geração por toda parte. E os prédios baixos e a população pouca e as ruas largas dos aristocratas e por isso os carros em enxame povoam cada quadrado aberto e são enxames de metal agressivo. A população de carros e carros e carros, e eu tenho sonhos dos carros guinchados copulando e procriando e tomando as ruas em um fluxo sem objetivo que não circular o aço polido e a fumaça. Por quê não têm os carros uns bancos de praça em seus capôs? e aí teríamos bancos por toda parte e a cidade seria alegre, e não um estacionamento gigante.
Mas todo meu rancor de colonizado foi só fumaça sem alvo, que é uma mentira que todos se contam, de que ainda há reis, a côrte linda do rei sol em seu gosto aristocrata pelas altas artes, essa fôrma sofisticada para mais consumo padrão, em série, indústrias padronizadas e carros e caixas da mesma neurose que atravessa todo o globo. Então de novo, aqui a guerra é a mesma: descobrir paz sem saber onde pisa, aceitar ser joguete da sorte, louvar a música e a saúde do corpo, ouvir.
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Albatrros ãdrre arrãnh
(ou ...gigante. Só vi barracas de acampamento foi sob os viadutos, os sem-teto e sem-carro e sem-barco vivendo acampados sob a ponte.
Eu fiquei tão triste de descobrir que eles vivem sob ditadura, que o meu rancor colonizado não tinha tanto alvo, que é uma mentira que eles se contam, de que são reis, a côrte linda do rei sol aristocrata em seu gosto pelas altas artes. E se as colunas imperiais dão abrigo a mais uma agência de seguros e sob os arcos centenários há a moda americana e as butiques padronizadas iguais às da minha terra natal, nada exibiu tanto o contraste do que ver num restaurante metido uma tela passando jogo de futebol emoldurada por um arabesco de ouro ricamente trabalhado, a fôrma da aristocracia para mais consumo padrão, em série, nessa rede que atravessa todo o globo.)