quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Na mesquita
Ao sair da mesquita, daremos a volta no quarteirão para voltar ao mesmo edifício, agora pelo lado profano do café. E eu desabarei na cadeirinha de ferro trabalhado, sem olhos ou pensamento. Um cansaço imenso me afligirá. Não ter o caminho. Porque lá dentro, a beleza fulgurante da verdade revelada. O uno. Neste mundo de sombras e correrias, horários organizados, plástico, papel de embrulho, ruídos e defeitos, soluços. Encontrar a paz silenciosa. Entrar na mesquita como num banho de silêncio. A alma em paz. Caminhar sobre ladrilhos finamente pintados em grandes mosaicos maravilhosos que sobem as paredes até culminar em abóbadas fantásticas. Roçar as roupas pelas colunas esculpidas nos detalhes mais sutis, e perder os olhos descobrindo a cada vez mais uma peça perfeita talhada na pedra com a precisão de mãos infinitamente mergulhadas neste gesto. O gesto de desenhar a palavra Allah de novo e de novo, em cada palmo visível da construção, em cada canto do espaço. Allah. A luz que desce do céu límpido sobre o deserto branco. As letras em traços fluidos na caligrafia das espadas e dos tecidos. Caligrafia de mil anos, para a qual nossa tipografia quadrada é brincadeira de crianças. Entrar na mesquita como um bárbaro bruto de uma civilização perdida em mentiras. Tirar os sapatos e adentrar o recinto das preces. Executar as muitas orações secretas. Partilhar do silêncio mútuo entre desconhecidos na louvação ao deus maior. Ao caminho puro, claro. O que eu não esperei é que fosse tão lindo. E o fardo depois me afogará ao tomar o chá de menta para os estrangeiros brutos. O peso imenso de não ter a verdade revelada, de seguir errando pela falta de rumo da civilização empoeirada, de carros bebidas e tanta violência. A mesquita convida, está viva, viva num convite que o catolicismo decadente nunca pôde me dar. Então sair de lá será um abismo, o olhar no abismo e a vertigem imensa. A contemplação da forma bela da unidade de deus puro em um desenho belíssimo. E o vento que nos arrasta sem cessar pelo mundo que se desmancha, que nos tropeça e esbarra e nos faz pender inclinados; este vento cessado. Ali finalmente erguido reto, o silêncio da alma e o ar imóvel. E a voz dele chamando para a prece do pôr-do-sol, o canto gemido dos árabes, quando me apoiei numa coluna e senti o coração fraco. O abismo de olhar a mesma palavra mil vezes repetida, o mesmo gesto mil vezes executado, com a perfeição absoluta, com a paz que tanto procuramos. A verdade revelada pelo deus uno. E quando antes eu passara em frente à sinagoga e vira soldados com fuzis prontos para reagir aos terroristas da Jihad que ali vêm se matar, eu lembrei que a guerra santa tem em si o conforto da única verdade. O abismo do colamento entre o divino e o revelado, o que já está, o que é. Não é uma verdade passada, posto que é aqui, é a contemplação da palavra bela. Allah. E após ver esta nudez da alma esvaziada ante o uno perfeito, vestir a alma guerreira da invenção dia após dia da divindade entre nós parecerá um fardo insuportável. No pátio das preces, bastará voltar ali, ajoelhar-me que a fé virá, e eu sentirei a comunhão muda com Allah, a verdade una, que ultrapassará todas estas palavras. Eu posso ser um deles, neste momento, eu posso estar em Allah. Um homem devoto. À verdade una, à divindade que simplesmente é, não se cria, que a criação é o uno, não o dois, o múltiplo. Que o mundo está feito, não por fazer. E o mundo das sombras é o erro. Eu vivo no erro. No plural borbulhante. E por isso tomo tanto cuidado com esse abismo de cessar as muitas faces da criação. Quero a luz criada que saiu de dentro de cada um. As verdades que despertaram de nosso seio e alimentaram o mundo. Não é uma recusa una. Não afirmo um Allah de muitas roupas que derrotará a palavra una do silêncio. Mas eu descobri o um a partir do dois, se havia luz e trevas, houve a certeza do caminhar dos cegos que transcendeu os pólos num caminho terceiro, que é o um reencontrado. A unidade a partir do caos, e não antes dele. O divino encontrado atravessando o dois. É esse o caminho do rio que atravessa a cidade profana e afina as almas entre si, soando a harmonia das suas orações. E visto daí, é muito claro que na mesquita única o dois dos sexos seja negado, profano, e deva ser coberto de véus. Todas as muçulmanas de cabelos contidos sob panos, de ombros, tornozelos, tapados. Sintoma da negação do dois. Da petrificação no uno. O divino, petrificado. E ao sair de lá, não quero erguer uma cidade de pedras. Há pedras demais, não é uma pedra maior que faz falta. Falta a verdade fluida do rio. Da unidade a partir do caos. A ordem cósmica que emergirá do caos profano, que será sua alma pelo caos afirmada. Caosmos. Gaia projetando o céu como seu espírito, e não o vazio transcendente vestindo roupas de carne impura. Mas senti falta dos cantos.
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Al-atrai andré aranha 3

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Cuidado. Há quanto tempo você não checa a água da caixa dágua? Formas de vida podem estar se desenvolvendo ali, ali de onde vem a água que você bebe. Você quer usar um filtro. Não gosta de comprar água mineral, plástico insuportável. Autonomia hídrica! Beber da caixa dágua. Mas o que tem lá dentro? Não demora muito começa a aparecer bichinho. Você dá um mês, desatento, e aparece até peixinho. Sapo, sapa. Larvinha e alga é de praxe. Tô falando de coisas maiores. De onde vêm? Talvez da chuva, do ar, mas talvez não venha de lugar nenhum. De onde vem poeira, você já descobriu? Surge do nada. O ar se acumula num ponto e de repente fica mais cinza, seco. E se não tem ninguém por perto, mais umidade, um lugar escuro, protegido, dá em rato, pombo. Morcego, essas coisas. Na caixa dágua o fenômeno é muito mais intenso. Outro dia abri a caixa dágua e tinha uma criança dentro. Porra demorou pra me buscar! Pulou fora e saiu correndo. Muito inconveniente. Limpe sempre a caixa dágua. Não dá duas semanas pode surgir cobra, cachorro, cavalo. Melhor animal para ficar na caixa dágua? Caranguejo? Lagosta? Poucos sabem, mas é cavalo. Cresce rápido que deus me livre. Se for viajar, se liga. Um dia tem um potrinho, no outro um cavalão do tamanho do teu quarto, duas éguas, uma vaca, galinha, um fazendeiro preguiçoso. E você pensando em colocar flúor. Cloro. Não adianta. Tem que ficar olhando todo dia. Tem que pegar o mal pela raiz. Tá dormindo? Pode ter bebido rinoceronte. Girafa, avestruz. Tem de tudo, tá foda hoje. Melhor é colocar câmera na caixa dágua, fio elétrico, torradeira. Esse é o caminho. Ficar verificando, não marcar bobeira. Laptop, microondas, tudo quanto é eletrodoméstico. Radiação faz bem, cancela essas porcarias de natureza. Se tu vai trabalhar, nenhum lugar melhor do que ali dentro. Tomar banho, só que tem é o sabão de côco. E aí se alguém abre e tu tá todo ensaboado, dá um grito! desce pelo cano. Se não cabe, fazer regime, e canos mais largos. Toboágua doméstico. Caixa dágua não é pra qualquer um. Cuidados necessários. Fique atento.
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Algas e aranhas atrás de andré

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O quarto
Adoro fazer bagunça no quarto. Sou praticamente um especialista. No momento em que escrevo, o chão do quarto está nu sem o colchão que me serve de cama, e a pequena varandinha se encontra atulhada de almofadas, duas cadeiras, um banquinho que achei na rua, cacarecos. "Atulhada" - eu acho que esse adjetivo cabe bem no meu quarto. Tenho uma tara por acumular coisas, bonequinhos, enfeites, pedaços de móveis, não sei definir. E livros, muitos livros. E papéis, pilhas de papéis. E cadernos. Sempre quero trazer as pessoas no meu quarto para ver sua reação, se está inóspito, ou se o caos está acolhedor. Vejo logo se espraiarem na cama, e o meu quarto tem essa permanente promiscuidade entre o largado no chão e o íntimo.
Duas leis de sanitarismo (sanidade). Roupas, ou junto ao armário ou, sujas, fora. E lixo na lixeira; comida nem fica aqui. O resto é sem regra mesmo.
Quando eu era pequeno eu tinha tantos tantos bonecos que chamava meu amigo Rafa e montávamos a Legolândia, com as casas, os laboratórios científicos, as selvas. Lembro de fazer censo na população de cento e tantos bonequinhos, e classificar as cabeças que mais gostava, os troncos, os chapéus/capacetes, antes de montar meu personagem-eu. Minha mãe tentava criar rotas pelo quarto, pequenas áreas que eu não ocupasse com as pecinhas para que ela pudesse passar. Mas sem sucesso. Ela também não podia criticar, pois no natal fazíamos presépios imensos por toda a sala, com montanhas de cartolina e lagos de espelho, que são até hoje minha referência. A cozinheira Elcy que me criou diz que desde então não mudei nadinha, chamando amigos para montar cenários pela sala.
De lá pra cá, só começo a lembrar das bagunças uns cinco anos atrás. Cobrir uma parede de cartolinas e fazer pinturas, e dormir com o cheiro da tinta. Tem manchas no rodapé até hoje, mas eu não aguentei o cheiro. Aí encasquetei com fazer o ventilador gerar desenhos ao deixar uma caneta pendurada sob o seu vento, por horas. Isso durou alguns meses, eu entrava de noite e dois ventiladores zumbiam com o vento riscando os papéis e eu ia afobado ver os resultados. O resto do quarto não importava, eram amontoados e som do risca-risca a noite inteira.
Vem daí um prenúncio próximo do meu carinho tanto por certas maquininhas bem mecânicas quanto pelo imprevisível vento e seus sussurros. A janela foi reformada para virar um janelão aberto, e na pequena varandinha, um futom para dormir. E dormir lá fora, voltado para o nascer do sol, minha pequena praia de todas as manhãs. Fui ficando bronzeado só de dormir, e acordar do calor às 8 para ligar o ventilador e me sentir na praia dormindo nu, no sol. Os vizinhos, lá embaixo (moro no 11° andar, em frente a várias vilas), se olhassem para cima veriam um distante atentado ao pudor. Daí no verão o vento fluindo e as muitas duchas frias na minha pequena guerra à cultura do ar condicionado apartado do clima e do mundo.
Dormindo nessa varanda com a porta fechada, com o céu atrás duma rede pra proteger nossa gatinha Amélia, ao lado duma gaiola de passarinho linda que achei um dia e guardei, mais um edredom que solta penas de ganso, e uns barbantes que estiquei pelo teto, onde prendi uma roldana com um gavião de brinquedo que podia nela correr - a ideia do pássaro engaiolado (Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho...) de asas dobradas, sem espaço, marca bem que ainda moro na casa dos pais.
Em vez de sair, fui adensando minha ocupação. Do lado de dentro, o quarto virou metade uma oficina, uma estante inteira de papéis e materiais para montar dozenas de projetos de textos e revistas, uma coleção de revistas nossas e alheias (livros livros livros) ferramentas, uma impressora espaçosa... Essa oficina que deve ganhar autonomia, que foi encubada aqui por 2 anos e que agora vai ganhar uma filha maior, e comum a todos. Talvez ela saindo, eu possa sair também. Minha impressorinha... o ôlho do ninho, a boca de abundância que jorra do meu quarto, eu me acostumei a dormir ao lado desse seu formigueiro.
Deixei de me recriminar, e assumi minha bagunça, em tantas e tantas tardes e noites que embirutei de mudar toda a ordem de tudo. Uma vez cheguei a pôr a mesa na diagonal, e a cama por debaixo dela, a cadeira pisando em cima. A regra é experimentar. E impedir que surjam, o que meu pai chama de pandemônios: núcleos duros de bagunça intratável, amontoados ou gavetas entulhadas de tanta coisa inclassificável que se torna apenas ruído, ruído sólido tomando o espaço com sua presença. É o espaço morto, negativado e contagioso. Como positivar o ambiente inteiro, articulado, desenvolto?
Daí a me apaixonar num texto antigo, "O Econômico" que é um tratado antigo sobre a arrumação (nomia) da casa (óikos) ou do navio. Saber o quanto cada coisa se faz usada para saber sedimentá-las sem que se embolem em menos de uma semana. As roupas e o lixo são o fluxo mais simples. Mas e o corpo, o habitante do quarto? E os copos d'água que surgem sem razão, os papéis anotados, as meias largadas que encontro, sem explicação? É esse o maior desafio da bagunça do quarto.
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andré aranha alba 3
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2 comentários
Comentários
Sandra Soares De Freitas
Sandra Soares De Freitas Será que tudo que imaginei é real?
Curtir · Responder · Enviar mensagem · 2 · 6 de agosto de 2015 às 16:54
Jonatan Agra
Jonatan Agra cara, que magnético isso tudo, essas palavras, minha identificação com elas, a imagem do quarto como um espelho de si. só que um espelho que refletisse não o que se é, mas o que se foi. nossos rastros. como um reflexo dos nossos gestos, com ou sem motivos, com ou sem utilidades práticas. o quarto como um reflexo em matéria dessa delícia incoerente e bisonha que é existir. copos d'água, pontas, sachês de chá, bilhetes, tesourinha de unha.