Na mesquita
Ao sair da mesquita, daremos a volta no quarteirão para voltar ao mesmo edifício, agora pelo lado profano do café. E eu desabarei na cadeirinha de ferro trabalhado, sem olhos ou pensamento. Um cansaço imenso me afligirá. Não ter o caminho. Porque lá dentro, a beleza fulgurante da verdade revelada. O uno. Neste mundo de sombras e correrias, horários organizados, plástico, papel de embrulho, ruídos e defeitos, soluços. Encontrar a paz silenciosa. Entrar na mesquita como num banho de silêncio. A alma em paz. Caminhar sobre ladrilhos finamente pintados em grandes mosaicos maravilhosos que sobem as paredes até culminar em abóbadas fantásticas. Roçar as roupas pelas colunas esculpidas nos detalhes mais sutis, e perder os olhos descobrindo a cada vez mais uma peça perfeita talhada na pedra com a precisão de mãos infinitamente mergulhadas neste gesto. O gesto de desenhar a palavra Allah de novo e de novo, em cada palmo visível da construção, em cada canto do espaço. Allah. A luz que desce do céu límpido sobre o deserto branco. As letras em traços fluidos na caligrafia das espadas e dos tecidos. Caligrafia de mil anos, para a qual nossa tipografia quadrada é brincadeira de crianças. Entrar na mesquita como um bárbaro bruto de uma civilização perdida em mentiras. Tirar os sapatos e adentrar o recinto das preces. Executar as muitas orações secretas. Partilhar do silêncio mútuo entre desconhecidos na louvação ao deus maior. Ao caminho puro, claro. O que eu não esperei é que fosse tão lindo. E o fardo depois me afogará ao tomar o chá de menta para os estrangeiros brutos. O peso imenso de não ter a verdade revelada, de seguir errando pela falta de rumo da civilização empoeirada, de carros bebidas e tanta violência. A mesquita convida, está viva, viva num convite que o catolicismo decadente nunca pôde me dar. Então sair de lá será um abismo, o olhar no abismo e a vertigem imensa. A contemplação da forma bela da unidade de deus puro em um desenho belíssimo. E o vento que nos arrasta sem cessar pelo mundo que se desmancha, que nos tropeça e esbarra e nos faz pender inclinados; este vento cessado. Ali finalmente erguido reto, o silêncio da alma e o ar imóvel. E a voz dele chamando para a prece do pôr-do-sol, o canto gemido dos árabes, quando me apoiei numa coluna e senti o coração fraco. O abismo de olhar a mesma palavra mil vezes repetida, o mesmo gesto mil vezes executado, com a perfeição absoluta, com a paz que tanto procuramos. A verdade revelada pelo deus uno. E quando antes eu passara em frente à sinagoga e vira soldados com fuzis prontos para reagir aos terroristas da Jihad que ali vêm se matar, eu lembrei que a guerra santa tem em si o conforto da única verdade. O abismo do colamento entre o divino e o revelado, o que já está, o que é. Não é uma verdade passada, posto que é aqui, é a contemplação da palavra bela. Allah. E após ver esta nudez da alma esvaziada ante o uno perfeito, vestir a alma guerreira da invenção dia após dia da divindade entre nós parecerá um fardo insuportável. No pátio das preces, bastará voltar ali, ajoelhar-me que a fé virá, e eu sentirei a comunhão muda com Allah, a verdade una, que ultrapassará todas estas palavras. Eu posso ser um deles, neste momento, eu posso estar em Allah. Um homem devoto. À verdade una, à divindade que simplesmente é, não se cria, que a criação é o uno, não o dois, o múltiplo. Que o mundo está feito, não por fazer. E o mundo das sombras é o erro. Eu vivo no erro. No plural borbulhante. E por isso tomo tanto cuidado com esse abismo de cessar as muitas faces da criação. Quero a luz criada que saiu de dentro de cada um. As verdades que despertaram de nosso seio e alimentaram o mundo. Não é uma recusa una. Não afirmo um Allah de muitas roupas que derrotará a palavra una do silêncio. Mas eu descobri o um a partir do dois, se havia luz e trevas, houve a certeza do caminhar dos cegos que transcendeu os pólos num caminho terceiro, que é o um reencontrado. A unidade a partir do caos, e não antes dele. O divino encontrado atravessando o dois. É esse o caminho do rio que atravessa a cidade profana e afina as almas entre si, soando a harmonia das suas orações. E visto daí, é muito claro que na mesquita única o dois dos sexos seja negado, profano, e deva ser coberto de véus. Todas as muçulmanas de cabelos contidos sob panos, de ombros, tornozelos, tapados. Sintoma da negação do dois. Da petrificação no uno. O divino, petrificado. E ao sair de lá, não quero erguer uma cidade de pedras. Há pedras demais, não é uma pedra maior que faz falta. Falta a verdade fluida do rio. Da unidade a partir do caos. A ordem cósmica que emergirá do caos profano, que será sua alma pelo caos afirmada. Caosmos. Gaia projetando o céu como seu espírito, e não o vazio transcendente vestindo roupas de carne impura. Mas senti falta dos cantos.
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Al-atrai andré aranha 3
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