quarta-feira, 2 de julho de 2025

Utopia tá tudo bem

ao Vidi e à Graça
Tenho um amigo que insiste na pergunta: o que é a utopia? o que seria? ele fica perguntando, tentando desenhar esse mundo tão longe.
Lembro de coletar umas frases antigas: as ilhas dos bem aventurados, a terra de onde jorram leite e mel, a abundante calípolis a bela cidade. Meu amigo se inquieta na indefinição dos seus eixos, nas dúvidas sobre o que vai constar lá: e há extensa bibliografia de utopias, de que nós vamos juntando retalhos para montar a nossa. A comunidade das mulheres e dos filhos, a abolição (ou abundância cômica) do dinheiro, a da preguiça ociosa, a que vai ao espaço, a que reina nas artes, a suruba infinita, a que vira jardim. Isso, quando montamos utopia: hoje temos essa imagem atrofiada, pensamentos meio curtos, meio céticos. Meio preocupados demais com um mundo inescapável, total, de onde não sai mais ninguém (e imaginamos com muita força essa distopia, em mil aspectos, até doer nossa cabeça).
Pois eu li da utopia ser um imaginário de desejo, na verdade em oposição a essa política onipresente que é o reino da necessidade. E daí a utopia gozar nos detalhes da felicidade que experimentaremos ao abalroar aquelas terras, ao saltar do barco naquela praia cálida, deitar na rede, à sombra dos coqueiros...
Mas é curioso, essa referência de utopia, ameríndia, acrescentava: ...na rede, comendo boa carne do inimigo. Arre, mas terá inimigos na utopia? Vencidos, talvez, no nosso banquete: seria a utopia uma espécie de vitória bélica. Mas na verdade, não uma vitória total, nada de extermínio, de englobar o mundo no sol da nossa unidade. Um momento bom. As coisas indo bem, esse brilho que fulge numa noite. Eis que penso que talvez a utopia não seja uma cidade longínqua, não seja uma terra inalcançável, apesar do nome. Talvez seja mais simples a ideia, mais aqui.
Pensando no nome dela, e sua negação (a não-lugar) me pergunto se realmente entendo o que ele significa. Com seu u de negação absoluta, implosiva (não como o não de atrofia que é mais plano, ou arritmia em meio à explosão de ritmos fragmentários: a urritmia seria uma abolição, talvez do tempo, talvez do som)(ou u-arquia, o mundo sem princípio) o u de utopia nega o topos (da topografia de onde se fala, do tópico em debate, da aplicação tópica na parte do corpo) ela nega de maneira absoluta como o ser se opõe radicalmente ao não ser do vazio e do vácuo.
E compreendemos, por acaso, a palavra não? Meu filho se exalta, diante da proibição, exclamando não e não enquanto ri repetindo o gesto proibido. Mais do que um desafio, ele apreende o que é negado: negar é afirmar, é reificar muito o que se nega a ponto daquilo existir latente enquanto não é feito. É um critério vigente por debaixo? É o interior vazio do vaso, com sua forma moldada; é o fundo onde desenho meu contorno: aquilo que se faz presente inexistindo...
Mas chega de etimologia, misteriosa, hermética, ainda sem respostas para mim. Que seria a utopia? Pois é que gosto da ideia de ser simples, um bom momento. Quando tudo vai bem: talvez a utopia não seja longe, e esse imaginário não requeira lunetas que nos afastem de agora. Talvez cheguemos na utopia afundando no agora: a utopia é um presente, quando as coisas vão bem.
Chegamos na ilha dos bem aventurados, e era o próprio barco, um dia que termina tranquilo, as crianças dormindo, a barriga cheia, o corpo com poucas dores e preocupações, distraído. Que delícia a distração. Imaginar uma brincadeira, fantasiar, ou mais ainda: repetir uma rotina com grande sabor, um dia como todos os outros mas também único. E vamos dormir pensando que as coisas vão bem. Que a terra hoje deu o suficiente, o que bastava, bastante. A utopia é bastante.
andré