Sento para escrever sobre as moedas. Tenho tudo preparado. Desenhei, em meu caderno, maravilhoso óculos de palavras: dois redemoinhos de perguntas sobre o ouro. Basta digitá-los, líneos.
Mas sou sacudido pelo encontro no chão. Estou no quarto de um amigo. Vamos chamar ele de Antônio Albatroz. Encontro um papel, do seu banco, do seu último mês.
São as dívidas ao banco. Ele devia 700. Pagou uns lanches, às vezes sacou 20 reais. O banco chupa 90, cobra 20 pelo serviço, e vamos a 900 devidos. Mês que vem, o juro é maior.
Eu poderia emprestar-lhe a grana. Mas e cobrar? Emprestar mil, dizer: tens um ano. Doze meses... minha poupança renderia 70. Eu podia emprestar muito barato pra ele, e valer a pena. O banco me paga 6 por mês, cobra 20 pelo serviço, empresta a minha grana pra oito pessoas além do Antônio, de quem cobra 20 pelo serviço, mais 70 por mês pela generosidade. Como pode o banco cobrar tanto?
Acabei de ler um livro sobre o bairro financeiro de nova iorque. Aquele porto do império colonial, Manatuouh, Manhatã, Manahachtanienk. Na rua do muro que os separava dos vermelhos, Wall. Onde ergueram, no número 14, uma pirâmide do mundo antigo em cima do arranha-céu de torre. Capital do capital. Mestres da papelada, fundaram a democracia há duzentos anos. E um novo mundo de criações financeiras. Será que um dia vou entender?
Tenho de estar eu mesmo na margem, no beiral da porta de saída, na fenda, abrindo a fenda: só aí, no umbral, forçando a fresta da porta, poderei ver e dizer e entender a alquimia viva destes papéis que se tornaram o nosso ouro. O que nos intermedia, o que está entre a população, as suas margens (somos rios de tempo), its banks. Sua história obscura, difícil de ser contada, em uma palavra, cega.
Vejo bem, nos relatos de cem, duzentos anos atrás, a proliferação de tantas notas com assinaturas as mais variadas. Mil bancos emitindo, e dando falência, ao lado de tantas falsas e roubadas. Patrão paga com cédulas de bancos perdidos, duvidosas, duplicatas, cheques e promessas de desconhecidos que os outros não aceitam em valor cheio. Inundação de papel, lubrificante, por vezes falso, só aumenta a orquestra da competição infernal. Promessas, contratos, ordens carimbadas em papel timbrado; escrituras, cartas com o selo do rei ou da repartição, ordens judiciais, disputando, competindo para afirmar seu poder concentrado e sendo ultrajadas, ignoradas; os canais sendo cavados, os feixes, alinhados; imbrincados, a competição de poderes e de suas manifestações, chamada indústria dos impressos de segurança, os não copiáveis. E não se fala sobre isso, uma história toda junta, papel-moeda e os selos de autoridade. A papelada.
Nunca entendemos as classes não produtoras, os gerentes, burocratas, capitalistas: a articulação, a trama que põe tantas partes em conexão, as dobradiças. Chamar capitalismo de democracia - mas e a empresa, a corporação, com sua assembleia dos diretores, e o pêso dos votos dos acionistas, já não está construída? Ficamos ofuscados pelo sufrágio universal, sem ver que o voto, esse papel contado, está por toda parte. Dinheiro que sai e que volta, sortimento de papéis contados que recebo (ou que herdo, ou arrisco criar) e que emprego, à escolha livre. História dos papéis contados, não copiáveis.
Não vejo dito, que no ouro, na prata, o metal raro permite é a medida, que se circule - imensa gincana, bazar e ciranda - um número, sempre igual, indo e voltando dos seus donos. Um nível - mais alto, mais baixo - numa escala do raro.
Tantas metáforas da água, tão perfeitas, sem nenhuma reflexão? Nível dágua, pois bem, e a liquidez, os bolsões, os fluxos, as cheias e as vazantes, a circulação, as injeções, a canalização... a sede, a pesca... os tubarões (agiotas, usurários).
E nosso parentesco com rios, drenando, irrigando. Vejam os países do alto, cortados por esses feixes, como que veios de árvores, as veias estradas, ruas, luzes, as bacias hidrográficas até os portos. Correnteza de anéis de metal, elos e correntes reunidas em feixes como um grande planeta de fantoches uns amarrados nas cordas dos outros, e sufocando em acusações de titereiros, sem ver as cordas, a cadeia de cordas... Cá embaixo são os fios dos fiados (do crédito acreditado) e da confiança, de que a aposta na ciranda vá dar certo. Imenso blefe no futuro, loteria, caça-níqueis - e este papel de mão em mão, com que se abrem, todas as portas, contagiando-as, maculando-as com seu desnível - não é outro disfarce, mais disseminado, do coringa dos jogos de baralho? Estranha e valiosa carta, que todos querem, que facilita, mas que tudo suja, degenera em cópia, simulacro da ordem que haveria sem ela ali, e que, para os que só têm coringas na mão, sufoca em ser só o nada, chafurdando na sua sujeira...
Mas me assusta, essas ideias - constatações - tão simples, primárias, passarem cegas, sem história, na guerra do dinheiro que brilha. A sede do ouro, de sua glória forjada, sua falsa luz que a tudo ofusca, é ela mesma cega, cegada, pelo seu próprio fulgor. Capitalismo: esta palavra mágica, que os ianques assumem com orgulho, sinônimo da sua liberdade. A trama suga e concentra na capital - na cabeça - no topo planejador, previsor, confiável, as rédeas para o concerto de membros ser levado ao limite de exaustão; alavanca de arquimedes movendo o mundo, cristalizando ferramentas, aço-muros e atalhos para a afluência - esta sempre sugada, recirculada, alavancada em grandes golfadas tecnológicas enquanto as pontas padecem, ressecadas, e o centro é um pântano do consumo do nada, dormência, simulacro do reinado da abundância. Pletora do coringa, o bobo da côrte, seu alquimista que proliferou o ouro na exata medida de inventar reis falsos, onipotentes mas ainda escravos do seu precioso mundo de preços.
O juro é a renda da terra, o excedente, a afluência (o número brotando) concedida ao coringa. Os medievais acusavam a moeda de ser porra, semente: nada cria tão-só ela mesma, que só com terra que o faz, a fertilidade, as mãos, mães da matéria.
-
Albatroz Zero
Vinte Dois
André Aranha